Saúde mental das crianças na quarentena: um desafio possível

Permanecer o tempo todo dentro de casa gera uma série de dificuldades na construção de atividades educativas e lúdicas para o desenvolvimento das crianças
Nos últimos meses, instalou-se no Brasil os efeitos da pandemia global do coronavírus (COVID-19) que tem exigido a necessidade do isolamento social, orientação do Ministério da Saúde a fim de proteger a população e minimizar a proliferação do vírus, que pode ser mortal. E é em meio ao surgimento dessa nova necessidade de conduta, nunca antes vivida, que surgem também os desafios.
Se permanecer o tempo todo dentro de casa já é estressante e difícil para os adultos, imagine para as crianças que vivenciam uma fase ativa em seu ápice de energia. Com os pequenos longe das escolas, surge para os pais a problemática de conciliar as demandas e mudanças no trabalho com o desafio de manter os filhos ocupados em casa e também atender às suas necessidades que, devido a maior convivência, se tornam muito mais frequentes.
Esse é o caso da bancária Vânia Primieri, 41, e do gestor comercial Christyan Dall Agnol, 36, que juntos dividem as tarefas do trabalho com a atenção necessária ao filho Gabriel, 4 anos, que tem autismo e uma grande lista de sessões médicas e compromissos diários que vão desde a escola à fonoaudiologia, psicologia e terapia ocupacional. “A criança autista precisa ter uma rotina estabelecida para seguir sua vida de forma mais tranquila, ela precisa saber o que vai acontecer na sequência de qualquer situação, e essa pandemia alterou totalmente essa rotina fora de casa. A gente não consegue projetar muita coisa pro futuro, pois tudo está muito imprevisível”, explica Vânia.

A mãe de Gabriel comenta ainda que no início da pandemia, junto com a suspensão das aulas, houve também a suspensão das terapias, que foi o período mais crítico. “Agora que os atendimentos individuais foram retomados, já o adaptamos para a nova realidade: sair de casa sempre com máscara, evitar ao máximo tocar nas coisas na rua e ter que se privar de ações como, por exemplo, chamar o elevador, que ele adorava, brincar em parquinhos, ver os amigos e estar com crianças da sua idade, visitar os parentes queridos que vivem na mesma cidade e não poder mais dar aquele abraço gostoso nas terapeutas”.
É um fato que esse novo momento tem transformado drasticamente as nossas vidas e a maneira como interagimos com o mundo ao nosso redor, mas não são apenas mudanças individuais que vêm ocorrendo. A relação das famílias dentro de casa passou a ser reconstruída diariamente a partir de novos moldes. Segundo a psicóloga Louise Neiverth, 30, a principal dificuldade nesse momento é a adaptação a uma nova rotina.
Desafio enfrentado por Chrystian e Vânia, que não pararam suas atividades profissionais desde o início da quarentena. “Com a suspensão das aulas, sempre um de nós dois está no local de trabalho e o outro em home office. O Gabriel é acostumado a ter muita atenção, pois, na rotina corrida de sempre, quando a gente está junto, nos dedicamos bastante a ele. Agora, quem está em home office tem que estar empenhado para atender todas as demandas do trabalho e ainda dar atenção, conduzir atividades e explicar para a criança que aquele é um momento de concentração e não de brincadeira. É bem difícil”, explica a mãe através de um áudio em que se pode escutar a voz do pequeno ao fundo fazendo alguma travessura.

“É necessário que a criança esteja seguindo rotinas, mantendo uma alimentação saudável e a prática de atividade física regular. O importante mesmo é manter-se ativo. Os pais podem elaborar junto com os filhos novas rotinas diárias, aumentando a participação nos afazeres da casa e mantendo a rotina de estudos e lazer”, explica a psicóloga Louise.
Uma família que entende bem do assunto “rotina” é a dos advogados Débora Nunes Camaroski, 39, e Andrei Amaral Camaroski, 36, pais da Agatha, 4 anos e 11 meses. O casal criou um cronograma detalhado em casa para manter a filha ocupada e também conseguirem, eles mesmos, se ocupar melhor durante esse período. “Criamos uma rotina própria, fazemos todo dia a atividade da escola, de desenho ou de escrita, sem deixar de lado a parte da brincadeira. Até levo ela pra cozinha comigo às vezes. Notamos que, quando consegue ocupar o tempo com atividades diversas ou fazendo alguma coisa nova, ela fica muito mais tranquila e dorme bem mais facilmente”, explica Débora.
Além disso, a família aponta o lado positivo que a pandemia tem lhes proporcionado: os pais acabam vivenciando um contato muito maior com a filha, o que possibilita novas descobertas diárias. Na família do Gabriel, não tem sido diferente. “Essa semana, com a ajuda da psicóloga, elaboramos um calendário de atividades, para ajudá-lo a visualizar a sua rotina diária. Ficou ótimo! Fora isso e as aulas, a gente parte mais pras brincadeiras mesmo: massinha, recortes, atividades de pintura, livros e histórias, música, dança, blocos, e um pouco de desenho na TV, porque ninguém é de ferro”, finaliza Vânia.
E quando se trata do ensino dos pequenos nessa fase restrita?
A psicopedagoga Ana Paula Camargo Petroski, 44, explica que as escolas têm tentado fazer o melhor, porém frisa que é uma situação bastante delicada tendo em vista que o acompanhamento nem sempre acontece de verdade, principalmente para alunos do ensino fundamental. “Não tem como alfabetizar uma criança no contexto familiar quando os pais precisam trabalhar e também não tem formação pra isso. Os desafios são muitos. O ideal é que os pais mantenham fazendo as atividades escolares on-line mas também não se cobrem tanto, pois isso pode acabar gerando ansiedade e sendo mais prejudicial do que benéfico”. Ela sugere a realização de atividades didáticas em casa seguindo as intenções do colégio. “Vale lembrar sempre que pai e mãe podem estimular os filhos, mas que não são pedagogos”, alerta Ana Paula.
Gabriel ainda não está em fase de alfabetização, mas suas aulas tem se dado de forma bem lúdica nesse período. A mãe Vânia comenta que tem sido bom pra ele não perder o vínculo e continuar se sentindo “parte da escola”, mesmo que a distância. “O recurso das aulas on-line é ótimo para variarmos as brincadeiras, pois nem sempre a gente consegue oferecer novas dinâmicas. Por mais que usemos a criatividade, uma ideia de fora sempre agrega bastante”, explica.
E em meio a todos esses detalhes, há ainda o desafio de como explicar sobre esse momento e a sua necessidade de permanecer em casa e manter certos cuidados para as crianças. Segundo a psicóloga Louise, não existe uma fórmula pronta ou ideal. “O que pode ser feito é entreter os filhos através de historinhas em quadrinhos, vídeos e brincadeiras que falem a respeito da importância de cuidar da saúde”, finaliza. Os pais do Gabriel captaram bem essa essência ao adotarem a estratégia de explicar para o filho sobre a existência de um “bichinho” lá fora que pode deixar as pessoas doentes. “Explicamos pra ele que tudo estava parado, que nenhum amiguinho estava indo pra escola, que ninguém podia ir a praia e aos parquinhos por causa do bichinho, então desde essa conversa ele ficou mais tranquilo. Periodicamente o lembramos desse assunto”.
Débora e Andrei também apostaram no tal bichinho para justificar as mudanças dos últimos meses. “A Agatha é muito esperta e ligada, quando tudo começou sentamos com ela e explicamos que tinha um bichinho que estava fazendo mal para as pessoas e por isso precisávamos ficar dentro de casa, que se ele não visse ninguém na rua iria embora. A partir do momento que a gente começou a precisar sair, ela nem queria ir junto por medo do bicho pegar ela, mas a gente explicou que usando máscara e não tendo contato com as pessoas ela poderia ter essa liberdade”, explica a mãe, que comenta ainda que a pequena, às vezes, até assiste ao jornal junto com os pais e está sempre mantendo a preocupação em se proteger e manter os cuidados necessários esclarecidos no vídeo didático, muito fofo, gravado por ela e sua mãe.