Guilherme Gitahy de Figueiredo: “Quando a gente desconstrói esse universalismo, o mundo cresce”

Voltamos à Deriva, compartilhando mais uma conversa. Aqui, o antropólogo Guilherme Gitahy de Figueiredo passa a tecer esta rede de trocas que tem se estendido a lugares, inicialmente, inimagináveis. Na sua companhia, chegamos à cidade amazonense de Tefé.

Com um longo currículo acadêmico, carrega o título de doutor em Antropologia Social, pelo do Museu Nacional (UFRJ), tendo dedicação à Antropologia da Mídia, entre outras áreas de estudo. Nas salas de aula da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), atua como professor no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas (PPGICH), no qual também é subcoordenador, e no curso de Pedagogia do Centro de Estudos Superiores de Tefé (CEST). Além disso, é integrante da Escola de Redes Comunitárias da Amazônia e, assim como Joelma Viana, faz parte da Rede de Notícias da Amazônia.

Em uma entrevista que rompeu os lugares usualmente fixos entre repórter e fonte, do momento prévio em que entramos em contato até a revisão do texto final, foram introduzidas duas perguntas novas ao quadro. Elas aparecerem ao início e ao final e serão fixas daqui em diante: a primeira tem o intuito de ambientar quem lê ao espaço de onde o/a entrevistado(a) fala e a última, de explicar, nas palavras de quem indica, o porquê da continuidade da conversa se dar com determinada pessoa.

Ao conhecer o educador, escutando as suas histórias e instigações conceituais, o diálogo se achegou das vivências pessoais que o guiaram nas suas pesquisas e pôde traçar uma discussão sobre os desafios no entendimento dos múltiplos sentidos presentes no verbo “comunicar”


[Deriva] Fazendo essa série, não esperava alcançar territórios tão distantes do meu. Então, por isso, acho importante começar pedindo pra você nos localizar geograficamente.

[Guilherme Figueiredo] Eu estou em Tefé, no estado do Amazonas. Tem até uma foto aí da frente da nossa cidade, que eu coloquei de fundo (se referindo ao cenário virtual da videochamada) pra você se ambientar um pouco mais. Fica a 522 quilômetros em linha reta de Manaus, e 587 de Tabatinga, cidade da fronteira com o Peru e a Colômbia. Então, se você olhar no mapa, vai ver que tá entre Manaus e a fronteira, onde o Rio Amazonas entra no Peru.

É uma cidade com cerca de 60 mil habitantes e uma cidade-polo, como se fosse uma espécie de capital aqui da região do Médio Solimões. Tem vários municípios que frequentam Tefé pra ir no banco, no hospital, pra resolver vários tipos de coisa, pra estudar. É uma cidade importante da região.

[D] Sei, pelas pesquisas anteriores, que você não é de Tefé. O que levou você até aí na sua trajetória de vida?

[GF] Eu moro aqui há 18 anos. Cheguei em 2004, logo depois de terminar o mestrado. Bom, é uma longa história. O meu pai é paraense, então já tinha família aqui na Amazônia. Os meus pais eram do movimento estudantil de 68. O meu pai estudou na USP, casou com a minha mãe, que estudava na mesma Universidade. Tiveram que sair pro exílio, foram pro Chile e eu nasci lá. Depois do golpe do Pinochet, eles foram para a Suécia, onde nasceu meu irmão. Quando voltaram pro Brasil, eles foram trabalhar na Unicamp, como professores. Por isso eu cresci em Campinas.

Só que, quando eu tava na minha graduação em Ciências Sociais, conheci o movimento zapatista, do México, que foi o tema da minha pesquisa: primeiro num trabalho de aula, da disciplina do Octavio Ianni, depois na iniciação científica e, então, no mestrado. Aí eu fui pra Chiapas (estado mexicano) em 98, fiz pesquisa de campo lá.

O Exército Zapatista, naquela época, foi o movimento que inaugurou o que é o ativismo na Internet. Já existia o ativismo hacker, o ativismo pelo software livre e tal, mas a união disso com os outros movimentos sociais, pra criar redes horizontais e internacionais na construção de, usando o lema zapatista, “um mundo onde caibam muitos mundos”, foi impulsionado a partir do zapatismo. Depois veio o movimento global anticapitalista, o Fórum Social Mundial e a coisa foi se espalhando.

Antes do levante zapatista, a esquerda era dividida entre reformistas e revolucionários. Era tomar o poder pela via eleitoral ou  pelas armas, e o zapatismo trouxe um caminho diferente, em que a comunicação ia pro centro da luta. Através dela,  acontece a construção e fortalecimento das autonomias locais e de redes de dialogicidade entre os povos do mundo.

Se a gente for procurar agora, a gente vai ver que isso já tinha no Paulo Freire, no Frantz Fanon. [Eles] já colocavam essas questões, mas isso se fortalece muito com esse levante zapatista, que, coincidentemente, aconteceu na época em que a Internet estava começando a ser popularizada. Então, na experiência deles, a comunicação se tornou importante pra qualquer estratégia de mudança. Ela pode conectar diferentes movimentos e estratégias em uma construção comum da história. Isso fez com que a comunicação entrasse na minha vida.

Eu me lembro que, quando voltei da pesquisa de campo em Chiapas, poucos meses depois já entrei numa rádio livre, a Rádio Muda, que tinha na Unicamp, e nunca mais deixei de trabalhar com comunicação. Tanto que depois, no doutorado, eu trabalhei com antropologia da mídia. Hoje, sou antropólogo da mídia e trabalho também com antropologia do colonialismo, estudos pós-coloniais e decoloniais. Tenho procurado aprender muito, por exemplo, com os intelectuais indígenas e negros. Tem toda uma nova geração. Sempre houve esses intelectuais, mas não tinham visibilidade e, agora, não só estão conquistando mais espaços como também a gente consegue ter mais acesso a eles.

Um lado do estudo do zapatismo foi isso, fez com que eu me interessasse pela comunicação. Passei a trabalhar isso desde então e, quando eu vim pra Tefé em 2004, a gente começou a trabalhar rádio livre aqui também. A gente teve durante muitos anos a Rádio Xibé e vários outros trabalhos de comunicação popular que a gente faz até hoje, como militante, como extensão, pesquisa e também em sala de aula.

Uma outra influência importante do zapatismo na minha vida foi a ideia de que as tradições ocidentais não são as únicas referências pra se pensar um mundo melhor, pra buscar por um mundo com mais igualdade, fraternidade, etc. O zapatismo deslocou a luta social pras referências indígenas.

Ele foi um exemplo na medida em que não se colocava como socialista ou anarquista, embora tivesse a simpatia desses movimentos, mas sim a partir das próprias tradições indígenas das diferentes etnias maias, trazendo esse conhecimento ancestral pra construção da luta. A estratégia de comunicação, a construção da autonomia, a forma de lidar com o conhecimento, com a arte, tudo era diferente e tava sendo muito fecundo, criativo e inspirador pra juventude naquela época.

Isso serviu também pra quebrar a noção de que a única fonte pra pensar novos horizontes são as utopias e conhecimentos científicos de origem europeia, dos trabalhadores europeus. Outros trabalhadores, outros povos do mundo também podem e têm muito o que trazer na construção de “um mundo onde caibam muitos mundos”. E isso me fez valorizar muito mais a minha própria ancestralidade.

Se eu até então não tinha me interessado tanto pela minha origem amazônida, a partir daí já comecei a querer aprender mais com os meus próprios parentes, com os conhecimentos de diferentes povos que tão presentes aqui no Brasil. Em particular, o meu lado indígena, que tem a ver com a minha família paraense. [Foi então que,] na época, surgiu uma oportunidade de emprego pra trabalhar numa organização ambiental aqui no Médio Solimões, e aí eu achei que era a oportunidade para começar essa busca. 

Olhando a proposta de trabalho, eu vi que se parecia muito com o tipo de luta que se fazia em Chiapas, no México, porque era [voltada a] ajudar a desenvolver a autonomia das comunidades ribeirinhas, a conhecerem os seus direitos e a participarem da gestão dos recursos naturais e dos seus territórios. Era uma oportunidade de aprender com povos que, até então, na ideologia dominante reproduzida dentro da própria esquerda, aparentemente não seriam fonte de conhecimento pra construção do futuro. E o zapatismo me ajudou a ver que sim, são fonte pra pensar o presente e o futuro. Esse foi um dos motivos de eu ter vindo pra cá.

Hoje, eu acho que eu não precisava ter feito isso. A gente sabe que tem povos indígenas no Brasil inteiro. [Aí,] em Santa Catarina, tem povos indígenas. Não só em todos os estados, como nas grandes metrópoles. A gente não deve essencializar o indígena como sendo apenas aquele que tá dentro do movimento indígena ou de uma comunidade na floresta. Além disso,  a cultura indígena tá presente e viva entre os brasileiros, assim como a cultura africana, a cultura árabe, etc. Tudo isso tá presente entre nós. A gente cultiva isso, vive isso, mas tende a negar e a exagerar o que seria a nossa herança europeia.

Quando a gente começa a se abrir pras nossas outras heranças, pros nossos outros patrimônios imateriais, a gente se torna muito mais rico. A gente cresce muito e a nossa identidade se transforma. Pra mim, esse processo se intensificou vindo pra cá.

[D] Achei interessante trazer a experiência zapatista como parte da sua formação e você fala sobre a centralidade da comunicação como estratégia de luta, de transformação dos mundos possíveis, a partir do que a gente vive. Quando a comunicação toma essa posição, a partir da experiência histórica e da sua vivência pessoal, o que acontece?

[GF] Olha, atualmente, eu sou muito freiriano. Não gosto muito da palavra “centralidade”, porque, quando a gente pega uma dimensão da história e quer colocar como central, tem um sério risco de cair no determinismo, de achar que tudo começa e termina ali. A história é muito mais complexa do que isso. Eu acho bastante fecunda a ideia do Paulo Freire de que a história é práxis, que é ação e reflexão. Pra ele, o que nos humaniza é a capacidade de mudança, de transformação, e ela se dá pela ação e reflexão.

Só que nunca o mundo se transforma da forma como a gente esperava, então ele sempre volta com um problema e você reinicia o processo de uma nova reflexão, uma nova prática, uma nova transformação e aí o mundo volta com um problema… É um processo infinito, mas viver essa dinâmica é o que nos humaniza.

Porém, ele diz o seguinte também: se esse processo de ação e reflexão não tiver o diálogo, a comunicação horizontal, então inevitavelmente humanos vão tratar outros como objetos. Aí você vai ter uma comunicação vertical, autoritária, violência e desumanização. Então, a gente só se humaniza quando partilha a história e isso se dá no diálogo, ou na comunicação horizontal, se você preferir.

A comunicação é uma parte fundamental. A gente precisa olhar pra ela pra conseguir pensar essa questão da humanização ou da desumanização no processo histórico. É fundamental, mas junto com a prática e a reflexão”. Claro que isso é muito abstrato, muito esquemático. Não nos fechemos a esses conceitos, que eles sirvam apenas como inspiração mesmo.

[D] Em um trecho de uma entrevista que você produziu com a Joelma, a nossa última entrevistada, você fala sobre ter escutado em sua pesquisa narrativas de comunicadores em que a “comunicação” aparece como coadjuvante em relação a outros projetos como “afirmação étnica”, “emancipação feminina”, etc. Gostaria que explicasse que análise que faz a esse respeito.

[GF] A grande questão aí é a seguinte: no Brasil, a esquerda brasileira e os movimentos sociais progressistas não dão muita importância pra comunicação. Isso é uma coisa que tem melhorado um pouco. A Igreja Católica trabalha bem com isso, o movimento indígena tá avançando bastante nessa reflexão, mas, de um modo geral, ainda é muito fraca a atenção que se dá pra dimensão da comunicação por militantes que buscam algum tipo de respeito, igualdade, esses valores que a gente acredita.

Em grande parte isso acontece porque prevalece entre nós, muito forte, aquele conceito de comunicação que vem da indústria de massa,  da mídia de massa, que é a ideia de comunicação como sendo simplesmente produzir mensagens e passar pras outras pessoas. [Sobre] essa visão da comunicação, o Mario Kaplún vai dizer que, até mesmo na própria tradição europeia, não é o sentido original. “Comunicação”, no latim, vem de communis, que é a mesma raiz pra comunhão, comunidade. É algo compartilhado, que se vive em comum.

Então, essa ideia de que a comunicação é um emissor produzindo mensagens pra um receptor, evitando ruídos e conseguindo o máximo de eficácia nessa transmissão linear, foi produzida a partir da mídia de massa. Inclusive, o próprio Kaplún fala que, no começo, nem mesmo ela usava a palavra “comunicação”, o primeiro termo usado era “mídia de massa” [ou, em inglês,] “mass media” e que só na medida em que essa indústria começou a buscar se legitimar dentro da sociedade é que surgiu esse discurso de “comunicação social”. [Ou seja,] tentou embelezar o que foi uma construção autoritária.

O espectro eletromagnético foi colonizado de forma semelhante ao que aconteceu com os territórios indígenas do mundo. Os rádios,  com a primeira geração de amadores, eram aparelhos que não só emitiam.  Os mesmos aparelhos eram emissores e receptores. Nos Estados Unidos, por exemplo, teve uma primeira geração de amadores do rádio, os “hams”, que conseguiu criar uma rede de comunicação horizontal de costa a costa.

O espaço eletromagnético era autogestionário. Eles se organizavam em associações, em clubes. Era muito parecido com o que foi o movimento hacker e de software livre no início da informática e da Internet. Da mesma maneira que agora a Internet tá sendo colonizada pelas grandes corporações, que tão transformando o que havia de dialogicidade em modelos de negócio e de vigilância autoritários e manipuladores, isso aconteceu também com o rádio. A TV já nasceu dentro do modelo de “mass media” e não precisava ter sido dessa forma.

No caso do rádio, houve uma perseguição aos hams. Foram demonizados, depois foram criando uma série de leis pra restringir o campo de atuação deles, até que, no final, conseguiram limitar eles a uma faixa do espectro muito pequena que se tornou o que a gente conhece hoje como radioamadorismo. O que a gente conhece hoje por esse termo era o rádio, era o começo dele. Na Europa, essa fase inicial do rádio se desenvolveu muito ligada aos movimentos operários, os movimentos revolucionários.

O cinema também. No começo era barato, acessível, então você tinha muito cinema popular. Depois, uma indústria foi centralizando [essa produção], reprimindo e tentando inviabilizar a vida daquele cinema mais popular. Isso tá documentado, tem vários livros de história que contam isso.

Então, você teve a criação dessa indústria cultural, dessa mass media e ela tentou se legitimar perante a sociedade,começando a usar o termo “comunicação”. Então, a ciência da comunicação fez o desserviço de trabalhar pra essa indústria e sistematizar, dar uma dimensão mais científica [pra esse fazer], como se isso fosse comunicação. O Adorno chega a dizer que seria impossível entender o nazismo ou o fascismo dos anos 30 e 40 sem o rádio. Sem o rádio já colonizado, transformado em ferramenta de dominação política, ideológica.

Essa coisa de você ter um ditador ou mesmo um presidente, numa suposta democracia, que consegue entrar na casa de cada eleitor ou de cada família como foi com Getúlio Vargas, Mussolini, Hitler ou Stalin, não veio do nada. Isso foi construído e houve muita repressão a formas mais democráticas de experiências radiofônicas e cinematográficas que existiram nos anos de 1900 a 1920.

A partir do momento em que a comunicação é vista como sendo transmissão unilateral de mensagens, não resta mais nada aos movimentos sociais a não ser fazer propaganda. Aí eles ficam limitados, porque você só vai ter experiência democrática e de partilha na assembleia face a face. E, quando você começa a utilizar as ferramentas tecnológicas, você só tem propaganda. Isso limita a capacidade de diálogo, de partilha e de construção democrática que esses movimentos vão ter. Empobrece  e enfraquece demais esses movimentos.

Agora, em outras regiões da América Latina, os movimentos indígenas, principalmente em alguns lugares como México, Equador, Peru e Colômbia, têm já muito claro isso: a comunicação como sendo comunidade, dialogicidade, partilha. A partir daí, sim, a gente começa a ver a comunicação como algo muito mais orgânico e constitutivo dos processos de luta e transformação histórica. E, então, você pode ter estratégias que avancem no sentido de uma maior justiça social de forma muito mais coerente.

O trabalho de pesquisa que eu faço hoje é muito nesse sentido de conhecer o trabalho dessas comunicadoras e comunicadores indígenas, quilombolas, ribeirinhos, movimentos populares urbanos e de movimentos de juventude que tão fazendo comunicação popular, livre e comunitária. [O intuito é de] conhecer o trabalho desses militantes, mas, principalmente, conhecer a produção intelectual deles. Muitos deles são acadêmicos, estudantes e professores, mas boa parte desse conhecimento acumulado por essas experiências tá formulado oralmente. Tá na contação de histórias desses grupos, nos relatos de experiência.

Às vezes, a própria pessoa até fez a sua dissertação de mestrado, mas não colocou ali todo conhecimento acumulado que ela tem como militante. Eu tenho procurado aprender com esse conhecimento das narrativas orais, de histórias de vida e relatos de experiências desses comunicadores, tentando encontrar conceitos e teorias que podem ser uma contribuição importante até mesmo pra se tornarem referências pra futuras pesquisas na universidade, de maneira que ela se aproxime mais desses processos históricos e possa ser apropriada por eles.

[D] E quais ferramentas você tem encontrado? Se puder me relatar alguma…

[GF] Nossa, é muita coisa. É um trabalho muito lento. Eu ainda tô muito no começo, mas a gente sempre acha que tá no começo, né? Outro dia, vi uma postagem de um amigo meu do tempo de rádio livre dizendo que ele tá com 50 anos e ainda se sente cru, se sente no começo das coisas e tal. Eu acho que é assim mesmo, a vida inteira é assim. Não existe essa ideia de um dia você estar maduro, estar pronto. Isso não existe.

Quando a gente se lança nessa deriva da vida ou nesse devir, nesse processo histórico, que em parte a gente constrói mas também vai nos surpreendendo, a gente sempre vai estar em construção. Nunca vai ter a sensação de estar pronto.

Nas pesquisas, eu me sinto sempre assim, mas dá pra ter uns primeiros relances. Uma coisa que eu tô encontrando nessas narrativas, que eu tô achando fascinante, é a diversidade de teorias da comunicação. Do próprio conceito de comunicação.

Esse debate do Kaplún, por exemplo, é [a discussão entre] uma visão linear da comunicação, que corresponde a uma legitimação de uma comunicação autoritária e vertical, e uma visão alternativa, que busca se enraizar numa etimologia do latim, dentro de uma mesma tradição europeia, tentando trazer uma visão de comunicação como sendo comunhão, partilha, comunidade e construção de participação.

Comunicar é você participar de um grupo, participar da sociedade. Isso é se comunicar, porque senão, se você achar que não é isso, a tendência dos movimentos sociais é a participação acontecer só na assembleia e, no resto do tempo, só ter propaganda.

Na pesquisa, eu tô vendo que não é só essa dupla. Não são apenas essas duas alternativas. Tem muitas outras maneiras de se fazer e pensar sobre isso. Comunicação como cura é uma das que eu acho mais fascinantes, que tem aparecido em várias entrevistas, em diferentes lugares da Amazônia inclusive. Isso é muito fascinante.

Vou dar o exemplo mais recente. A gente tem uma rede de grupos comunicação popular em Tefé. São vários coletivos e projetos que trabalham a comunicação de alguma maneira: comunicação indígena, comunicação de rádio comunitária, escolar, um grupo que trabalha nas redes sociais combatendo fake news… Enfim, tem vários grupos trabalhando e a gente criou uma espécie de rede onde eles se ajudam mutuamente.

É tipo um mutirão da comunicação. O termo que se usa na nossa região pra mutirão é “ajuri”. É algo muito forte aqui nas comunidades ribeirinhas, mas em alguns bairros da cidade a gente encontra isso também. O ajuri, no caso de um bairro, é quando você junta as famílias daquela localidade pra fazer a limpeza de uma rua, tentar resolver um problema ali da região… Nas comunidades é quando, por exemplo, várias famílias se juntam pra ajudar na roça de uma delas, que depois retribui no ajuri seguinte. A nossa rede trabalha dessa forma. A gente tem os momentos de partilha, de apresentação de trabalhos, etc, mas também tem o momento de ajuri da comunicação, quando vários projetos se unem para apoiar a iniciativa de um deles.

O primeiro ajuri que a gente teve foi pra fortalecer o trabalho de comunicadores indígenas da Aldeia Marajaí. Cada um trouxe um pouco de alimento, a gente fez uma vaquinha pra comprar gasolina, uma pessoa conseguiu uma canoa e a gente juntou tudo isso pra passar um domingo nessa comunidade fazendo várias oficinas. [Teve] desde oficina sobre como editar vídeo no celular até maquiagem cinematográfica. Um monte de coisas. Foi super legal. Já tem mais uns dois programados pra esse ano.

A última atividade que nós tivemos, que foi sábado passado (mencionando o dia 14 de maio), foi do Grupo Magia das Artes, que é liderado por Valdeney Silva Neves. Ele se autoidentifica como gay e tem uma personagem, que é a Safira. [Nessa ocasião,] ele contou a história dele, da Safira e do Grupo Magia das Artes, em que participa a minha companheira Eliane Góis, e ele deu o seguinte título pra apresentação: “A arte como cura”. No caso deles é um grupo de comunicação, mas que enfatiza mais a arte, tanto que tá no nome. Eles são um grupo de teatro e cinema.

O Valdeney conta que sofreu homofobia dentro da própria família, e depois muita violência com o primeiro companheiro, que era muito possessivo.  O teatro começou a partir de um trabalho de aula. Uma professora na escola pediu pra eles fazerem uma peça, eles começaram e não pararam mais. Passaram a apresentar em outras escolas e virou um grupo de teatro.

Ele diz que foi a arte, e a criação da personagem Safira, que fez com que se levantasse e se curasse, depois de ter passado pela depressão e uma série de coisas. Ele comentou sobre a arte como cura, mas acho que a comunicação tá presente aí também. Tem várias outras histórias de vida em que a comunicação aparece como cura. Nesse caso, há uma teoria da comunicação como arte e cura que pode ser analisada através das narrativas do Valdeney.

Aí tem experiências de vida em que a comunicação aparece como autoafirmação da identidade. A Joseane Calazans de Brito, comunicadora do Amapá, é radialista e atua com ênfase na divulgação do trabalho dos mestres de cultura do município dela, Mazagão Velho, que é uma cidade em que quase todos são negros. É uma cidade, inclusive, que veio da África, literalmente. Uma cidade que migrou inteira da África pro Amapá. [Lá,] tem uma vida cultural fortíssima. Ela diz que é o berço da cultura amapaense.

A partir desse trabalho de divulgação cultural e da identidade negra amazônida, ela faz todo um combate à ideia de que a Amazônia é só cabocla ou só indígena. A comunicação pra ela é isso: combate a estereótipos, transformação, autoafirmação da identidade e autoconstrução do sujeito negro amapaense pro mundo, pra Amazônia, pro Amapá e pro próprio povo do Mazagão, que se vê ali e fortalece a sua autoestima e dignidade. É uma comunicação mais ligada ao processo de identidade, a algo que costuma ser rotulado como “folclore”, mas, na verdade, são processos muito mais importantes.

Inclusive, o meu trabalho de pesquisa tem um pouco a ver com as suas entrevistas. Você deixa um pouco em aberto o que você tá procurando, de maneira que se abre pro inesperado. Você me disse que achava que essa série de entrevistas sobre comunicação ficaria delimitada ao território mais próximo de Santa Catarina, e, provavelmente, você tava imaginando também que o assunto não fosse se ampliar tanto. Adoto técnicas para deixar meu trabalho de pesquisa aberto ao inesperado da mesma maneira.

[D] Inicialmente, isso foi uma pauta discutida com o meu orientador, porque faço essa série através de um projeto de extensão. A gente não tinha o objetivo de que se falasse sobre comunicação. Porém, o primeiro entrevistado foi o Carlos Praxedes, coordenador do curso de Jornalismo da Univali, e ele me indicou uma comunicadora como a próxima entrevistada. Na sequência, continuaram as indicações de pessoas que atuam nesse campo e abracei isso como parte da proposta.

[GF] Eu parti dessa ideia de pesquisar as experiências de comunicação popular, porque eu acho que esse conceito é mais amplo quando a gente vai resumir: abarca as experiências de comunicação livre, comunitária, indígena, quilombola… O termo “popular” me parece que é o que mais se abre a essas possibilidades todas. Quando eu posso, eu falo tudo, mas, quando eu quero resumir, falo só “comunicação popular”.

Parti com essa ideia de busca aberta a conversar com pessoas que eu não imaginaria, e para aprender coisas novas. Não quero entrevistar um monte de gente pensando igual, e sim pessoas que têm uma certa experiência, certa trajetória, então trazem bastante coisa pra compartilhar,  ensinar coisas novas. Quero conhecer os vários tipos de comunicação que tão sendo feitos por aí e aprender.

A ideia era um pouco parecida com a sua proposta de me deixar pautar também. Não formulei nesses termos, mas acho que se trata disso. Na linguagem do jornalismo, seria se deixar pautar e, na linguagem da pesquisa, permitir que os entrevistados tenham incidência no método e nas categorias de análise, o que é a proposta da etnografia dialógica.

Tem o comunicador Francisco Batista, por exemplo, que já fala da “comunicação da gentileza”. Ele tem toda uma prática e uma experiência da gentileza como elemento importante da comunicação pra que possa acontecer a partilha. É um barato o que vai aparecendo. Vai muito além de, simplesmente, você falar de uma comunicação democrática ou autoritária. Começam a entrar muitos outros elementos, o que é coerente com a ideia de que a comunicação é algo muito mais orgânico na história, na vida.

[D] Li também você falando um pouco sobre alguns clichês que a gente tem dentro do campo, alguns jargões que aparecem, como “democratizar a comunicação”, e que, através da sua pesquisa, você passa a entender outros jeitos de se pensar o que seria essa real democratização. Para sair dos jargões, você encontrou outras formulações, termos ou palavras sobre isso?

[GF] O desafio não é nem mudar o nosso vocabulário. O principal desafio não é esse. A gente pode mudar o vocabulário e continuar igualmente cego. O grande desafio é a gente conseguir se abrir pro outro. Porque, desde a minha tese de doutorado, eu já venho analisando isso: eu etnografei a experiência da Rádio Xibé e como foi a interação dessa Rádio com outros comunicadores através das redes nas quais a Xibé estava participando. Redes que usavam a Internet pra poder fazer um trabalho à distância, tanto de rádio livre quanto de mídia independente, porque a gente também tinha um trabalho de jornalismo aqui, ligado à rede mundial Indymedia.

Comecei a perceber que havia uma tendência de se ter midiativistas, vamos dizer assim, trabalhando na mesma rede durante anos e um não saber nada sobre o outro, ter uma visão totalmente estereotipada sobre o outro. E, geralmente, a visão estereotipada que se tem sobre o outro é muito baseada na sua experiência própria.

Se o meu coletivo ou o meu grupo de comunicação faz rádio livre, então vou achar que todas as outras experiências nesse formato são versões imperfeitas da minha. Tem uma certa tendência a se ver outras experiências de comunicação como se fossem mais imperfeitas que aquela que o próprio grupo faz.

Ao invés de eu tentar ver, valorizar as diferenças e aprender com elas, através de um aprofundamento da comunicação, eu coloco a minha experiência como sendo a autêntica, e aí, tanto faz qual vocabulário que eu vou usar, vejo as outras como formas mais imperfeitas. Isso empobrece. Isso vem muito da tradição ocidental da gente pensar a nossa estratégia de transformação como sendo universal.

A tradição europeia vai muito no sentido de pensar a mudança social e a história dentro da visão cristã e bíblica: há um povo escolhido, que tá mais próximo de Deus e, a partir daí, todos os outros são pagãos. Quando são catequizados, vão se tornar formas mais imperfeitas de cristãos e, depois, a ciência herda isso.

A ciência de origem europeia vai ter esse mesmo tipo de universalismo. Então, [de acordo com essa lógica,] essa ciência é o que há de mais avançado em termos de conhecimento e, na medida em que você vai levando isso e criando universidades ao redor do mundo, a partir desse mesmo modelo, elas vão ser vistas como formas mais imperfeitas desse conhecimento ocidental.

Há muito tempo, a esquerda tem utopias de origem europeia. O socialismo do século XX é uma teoria muito pautada na ciência. Já tinha isso mesmo a partir do século XIX, embora nessa época estivesse mais enraizada na cultura da classe trabalhadora. É uma visão de que a transformação se dá a partir do conhecimento científico. A esquerda reproduz esse universalismo, e, consequentemente, é muito competitiva, porque sempre tem aquele movimento que se acha a vanguarda, que acredita que o que tá fazendo é o limiar do que poderia haver em termos de luta partidária, movimento que defende algum tipo de pauta identitária, ou alguma outra coisa.

A gente reproduz muito isso, o que nos leva a não enxergar ou a não valorizar a diversidade, o que a gente pode aprender com as experiências, histórias e formas diversas de criatividade. O grande desafio é a gente, pouco a pouco, ir desconstruindo esse conceito, que tá presente no cristianismo europeu, na ciência moderna e, pouco a pouco, ir aprendendo com outros povos do mundo. Outras tradições de práxis histórica e de conhecimento não têm esse universalismo.

Junto aos povos indígenas, no sentido amplo, não só da América, porque, historicamente, os europeus chamaram de indígena todos os que não eram europeus, a gente vai ver muito mais presente formas pluriversas de se lidar com conhecimento e a história. Modos mais abertos à diversidade de experiências históricas, de conhecimento e de prática.

Quando a gente desconstrói essa forma mais universalista de ver e vivenciar as coisas, o mundo cresce, o mundo se torna riquíssimo. E aí a gente começa a aprender sobre formas de comunicação incríveis. Aliás, sobre qualquer assunto. Isso não quer dizer que a gente vai concordar com tudo, vão ter muitas formas de autoritarismo e violência, mas vão surgir muito mais oportunidades da gente aprender a se conectar com experiências respeitosas, que ajudam a construir um mundo mais respeitoso entre humanos e com a natureza, que é o que a gente chama de Bem Viver.

[D] Guilherme, quem é a próxima pessoa a entrar nessa conversa e por quê?

[GF] A pessoa que eu pensei pra te indicar é o Frei Miguel Ángel Cadenas Cardo, bispo de Iquitos, de Loreto, no Peru. Ele é uma pessoa interessante, porque desconfio que ninguém indicaria o nome dele. Eu conheço dezenas, muitas pessoas que seriam fantásticas de você entrevistar. Tem um monte de pessoas fazendo trabalhos sensacionais. Agora acho que ninguém indicaria um bispo (risos).

Ele é um cara super interessante pra pesquisar comunicação, porque ele foi diretor da Rádio Ucamara. Ele ocupou esse cargo quando era padre e fez um trabalho que facilitou que os catequistas indígenas, com quem ele trabalhava, se apropriassem da Rádio. 

Hoje, o diretor Leonardo Tello Imaina e toda a equipe da Rádio são indígenas do povo Kokama e eles fazem um dos trabalhos mais inspiradores que existem na Panamazônia pra se pensar e fazer comunicação. A gente aprende muito com eles, é fantástico. [Trabalham] muito a comunicação como memória, oralidade, mitologia e comunicação com os seres da natureza. É super interessante o trabalho que eles fazem.

Esse padre, que hoje é bispo, facilitou esse processo. É um parceiro, um aliado. Eu acompanho as redes sociais dele e, pelas postagens, tenho visto que até a forma que ele faz o trabalho como bispo e como ele pensa a comunicação da Igreja Católica na sua diocese tem ideias que vão nessa direção da dialogicidade. São decoloniais, inclusive. Eu fiz uma entrevista longa com ele que mostra que ele lê sobre virada ontológica e outros debates muito atuais. Como é algo surpreendente pra muitos leitores, seria uma pessoa bem interessante pra se entrevistar.

E conhecer essa experiência é importante até para se entender melhor as experiências de comunicação na Amazônia. Em nossa região, assim como acontece em muitas outras da América Latina, ao menos desde os anos 1960, a Igreja tem dado uma contribuição muito importante para a educação popular, a comunicação popular e a formação dos movimentos sociais.


Como Guilherme indicou, na próxima publicação, a fronteira da Amazônia brasileira será cruzada até a floresta peruana, por onde Miguel Ángel Cadenas Cardo caminha há mais de duas décadas em missão eclesial. Ao ultrapassar as divisas territoriais e linguísticas, surge outra oportunidade de reformular as perguntas e aprofundar as respostas.

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