Carlos Praxedes: “A gente não vive num ambiente de democratização dos meios de comunicação”

Hoje, 7 de abril, é comemorado nacionalmente o Dia do Jornalista. Para marcar a data, o Jornal Cobaia inicia com esta publicação uma série especial de entrevistas, com o título de Deriva.

No dicionário, esse substantivo pode ser referido como um termo náutico que significa um “desvio do rumo de uma embarcação provocado por ventos e correntes” ou então, com a adição da preposição “a”, se refere a algo “sem rumo certo, ao sabor dos acontecimentos”.

Aqui, o sentido é parecido com esse último. A cada semana, teremos uma pessoa entrevistada e, ao final, ela é quem sopra a sugestão de por onde e com quem podemos continuar os entrelaçamentos por meio da conversa.


Para abrir a série, o nosso primeiro convidado foi o professor e coordenador do curso de Jornalismo da Univali, Carlos Praxedes. Jornalista há mais de 25 anos, com 18 desses dedicados à docência e 12 deles à coordenação do bacharelado, ele expôs as suas impressões sobre os impactos de dois anos da colapso sociossanitário no campo jornalístico, tanto na área profissional quanto na formação, e trouxe a sua visão a respeito de temas como a crise do jornalismo e hiperconectividade.


[Deriva] A gente viu que no mundo a relação do público com o jornalismo mudou durante a pandemia. Já em 2020, alguns estudos, que foram reunidos por iniciativas como o MediaTalks, mostraram que o acompanhamento de notícias passou a ocupar mais tempo na vida das pessoas e que a confiança na imprensa aumentou nesse período. Regionalmente, a análise é parecida?

[Carlos Praxedes] Com certeza. Todo mundo ficou meio desesperado no primeiro momento e as pessoas tiveram essa tendência de procurar informação em veículos tradicionais, com respaldo. Mesmo a gente sendo bombardeado por uma série de informações falsas, por vários lados, até por meio do próprio governo, que é exatamente quem deveria transmitir informação correta, a gente observou que as pessoas foram buscar aquela informação mais aprofundada, checada, analisada nos veículos tradicionais. Não só neles, mas [temos que considerar que] boa parte das pessoas só tem acesso a alguns tipos de veículos. A gente tem um número muito reduzido até hoje, no Brasil, de acesso à Internet. Então, de uma maneira geral, isso acabou acontecendo.

Por outro lado, a gente também observou que ampliou a precarização do trabalho do jornalista, que já vinha com condições de trabalho muito ruins. Começou-se a usar apenas declarações, sonoras na televisão eram feitas pela própria pessoa… Ou seja, não se entrevistava mais e, quando se fazia isso, era à distância, o que é terrível pro jornalista, pro jornalismo em si. A gente já tem uma série de veículos que se baseiam no jornalismo declaratório, que tem no jornalismo só opinativo o seu principal palco de ação, a sua principal ferramenta. O jornalismo opinativo [apresenta] às vezes só a opinião pela opinião, a opinião em cima de declarações sem análises mais aprofundadas.

Agora já se percebe, provavelmente a gente vai ter números aí já já, que as pessoas estão voltando àquele “normal” anterior à pandemia de não consumir tanta informação, o que é uma pena.

[D] Então concorda que houve esse ganho, mas que não é um fenômeno que vai continuar depois da pandemia?

[CP] Eu gostaria muito que fosse, que as pessoas continuassem procurando a informação, não só nos grupos de WhatsApp, que continuasse havendo essa procura. Mas a gente já tem notado que os telejornais, que naquele momento estavam tendo uma hora e meia de duração, já estão voltando para os seus 45 minutos, uma hora, no máximo. É sinal de que a audiência tá caindo. Se a audiência continuasse elevada, certamente eles não iriam querer perdê-la e iam continuar. É claro que também houve um fenômeno cansativo demais de ter todos os dias as mesmas informações. Obviamente, chegou um momento em que as pessoas provavelmente não aguentavam mais.

As Olimpíadas, no ano passado, creio que foram o primeiro evento que provocou um certo alívio. As pessoas assistiram, mesmo sendo de madrugada, e conseguiram relaxar depois de um ano e meio, mais ou menos, porque não é fácil. Em todos os países isso provavelmente aconteceu, mas aqui no Brasil, com todo o contexto em que a gente já tá incluído, de uma inflação que vinha galopante, já há muito tempo, da perda do poder aquisitivo, do aumento da fome, [com] aquelas informações chocantes, [aparenta ter tido ainda mais impacto]. Muita gente que eu conheço veio dizer pra mim: “Quando começa isso aí, eu desligo”.

[D] Porém, noticiar esses fatos, que são de real interesse público, foi também o que fez com que as pessoas prestassem mais atenção aos noticiários, que antes não estavam pautando essas questões com uma abordagem popular. Isso faz remeter aos debates que a gente tem no curso sobre “a crise do jornalismo”. Esse termo se refere ao quê?

[CP] A gente observa, ao longo do tempo, [que] muito dessa crise do jornalismo, obviamente, é muito em função do momento atual do capitalismo no mundo. Veja, em países mais democráticos, existem métricas que deixam muito claro que a corrupção nesses países é mínima, quase inexistente, e que paralelamente as condições de vida são excelentes. [Neles,] você tem um jornalismo muito forte, muito forte. Qualquer escândalo, o cara que comprou ali, gastou cinco euros no cartão corporativo, isso vai estar nas manchetes dos jornais e isso não é banalizado como aqui.

[No Brasil,] há problemas éticos impressionantes, de grande magnitude, desvio de dinheiro incrível e nada acontece. E, muitas vezes, o próprio jornalismo internamente passa pano, dá uma disfarçada, porque os proprietários desses veículos jornalísticos têm interesses muito antigos e muitos claros, que é continuar cada vez mais, obviamente, obtendo dinheiro. Isso tudo historicamente a gente pode explicar, todo o controle terrível, uma importância grande demais que o governo tem na mídia brasileira, na destinação de recursos pra esses caras.

O mundo inteiro vive crise no jornalismo, o jornalismo vive em crise no mundo inteiro. E, aqui, particularmente, isso é muito sofrido e parece às vezes que só quem estuda comunicação, só quem estuda jornalismo, enxerga isso. Porque, no nosso país, isso é terrível. As pessoas, no geral, têm muito preconceito com quem é jornalista, principalmente desde 2013.

[D] Existe um dado que coloca o Brasil entre os países que mais matam jornalistas no mundo.

[CP] Nem vou na questão da violência final, que seria os crimes ou agressão física, eu digo mais na questão da crise de legitimidade. As pessoas não entendem o papel incrível, importantíssimo, que o jornalismo tem pra democracia, porque as pessoas no Brasil muito provavelmente não sabem o que realmente ela significa.

Antigamente, jornalistas eram cultuados, eram muito respeitados na sociedade. Aqui no Brasil, durante muito tempo foram respeitados, mas hoje em dia não. Tudo caiu num grande balaio, como se jornalistas fossem criaturas que só falam o que interessa a quem está no poder ou quem quer tomar o poder.

A briga político-partidária comprometeu o discurso dos jornalistas, eu sei. Até entendo boa parte da população, porque durante décadas foi isso mesmo que aconteceu. Só que a população agora se vê numa armadilha muito grande porque não consegue mais discernir. Não consegue, não tem como discernir. É incrível o que acontece.

[D] Ao mesmo tempo, parece que a democratização dos meios de comunicação, como fez a Internet, fez com que todo mundo se sentisse um pouco como jornalista, que foi aquilo que comentou anteriormente. Então, nesse momento, a gente necessita de educação midiática pra contornar isso.

[CP] Total, porque é assim, veja bem, a gente na verdade não vive num ambiente de democratização dos meios de comunicação. Eu não acredito que a Internet até hoje tenha democratizado [os meios de comunicação]. Ela poderia ser, mas ainda não é um veículo ou um meio de comunicação que tenha democratizado [o acesso], porque ela pertence a alguns, assim como todos os outros meios. “Ah, mas eu falo o que eu quero lá no Facebook”, ou no Instagram, ou no Twitter, enfim. Não, você fala e ali tem filtros.

A gente se sente mais ou menos, mais ou menos, numa certa liberdade, mas não. De repente, tem uma palavra que você fala ali, sem qualquer intenção, e na hora você pode ser bloqueado por uma dessas [plataformas] porque não é dono desses meios. É isso que eu acho que prejudicou mais ainda. As coisas vieram de um jeito pra parecer que elas tinham realmente democratizado a comunicação, mas nunca fizeram isso. Qual o grande objetivo do Google? É dinheiro. Do grupo lá do Facebook, o Meta? Também! São pouquíssimas empresas que controlam.

[D] Usei a palavra “democratização”, mas logo lembrei de uma analogia que o jornalista Bruno Torturra faz dizendo que, na Internet, a gente ainda está na era do feudalismo, produzindo em campos que não pertencem a nós.

[CP] Não pertencem, não adianta. O que seria uma democratização? Eu gosto muito de jornalismo comunitário e estudo muito isso desde 2002, quando eu entrei no mestrado, porque a minha pesquisa foi sobre rádio comunitária e tal, que é um negócio muito legal, que é uma coisa muito bacana. Enquanto a gente não tiver canais de rádio e televisão comunitários, feitos pela comunidade… E a gente não tem, né? Raros são os exemplos. Um ou outro assim, em pontos remotos do país.

Não existe uma rede devidamente conectada, existem grupos com interesses muito próprios. Existem associações de rádios comunitárias? Existem, cada uma com os seus objetivos. Muito mais políticos do que pra uma democratização da coisa. O que é perigoso é se formarem grandes conglomerados, feitos só por alguns. Isso aí é muito difícil no Brasil de acontecer. Eu já tive mais esperança que isso fosse acontecer, não tenho mais tanta esperança nisso num futuro próximo.

[D] Sobre a gente, aqui dentro da Universidade, nós passamos quatro semestres, pelo menos no Jornalismo, longe das pessoas. Acredita que a gente se distanciou das realidades concretas por isso?

[CP] A gente, desde o semestre passado, já foi voltando aos poucos. Acredito que a gente teve prejuízo, não tem como negar. Mais de 340 cursos passaram por isso. Alguns mais, outros menos. Nas universidades federais, agora que eles estão entrando em sala de aula. Muitos nem entraram ainda. São situações em que, infelizmente, ninguém tá preparado. Ninguém está preparado pra uma pandemia, obviamente.

[D] É inevitável pensar que a gente teve um prejuízo. Todo mundo passou por isso, as universidades privadas, as comunitárias, as públicas, todas elas. Porém, antes da pandemia, o distanciamento social entre o ambiente universitário e as pessoas já acontecia?

[CP] Eu acho que as pessoas no geral vêm se distanciando. Eu fico abismado quando você pede pra alguém assim “Passa a ligação pra mim!” e a pessoa não sabe qual o comando nesse telefone analógico aqui, ó! (mexe no telefone fixo que fica no seu lado direito), e a pessoa não sabe qual é o comando pra passar a ligação adiante. Aliás, tem muita gente que não usa isso aqui (se referindo ao aparelho telefônico novamente).

Se nesse momento, e pode acontecer, todos os sistemas caíssem, de Internet e tudo mais, como a gente iria se virar? Como a gente iria fazer jornalismo? Da forma como a gente fazia antes, indo até os lugares, conversando, entrevistando, com um gravadorzinho em mãos, nem era celular, era fita ou depois já o digital, e a gente ligava. A culpa disso é do próprio jornalista, acomodado. Muitas vezes, é claro, a culpa é da empresa que o contrata, que não lhe dá condições de trabalho, óbvio.

[D] E as universidades?

[CP] As pessoas estão muito individualizadas, cada vez mais, apenas nos seus grupos. Se você hoje levar uma pauta pra sala de aula e você pedir que o acadêmico fique uma hora no corredor e ele tiver que abordar alguém ali pra fazer uma pauta de repercussão sobre um assunto do dia, muitos vão entrar em pânico, não conseguem chegar. O nosso desafio hoje enquanto professores é voltarmos ao passado e tentarmos derrubar essas barreiras que se criaram. E muitas dessas barreiras que se criaram, infelizmente, foi a própria tecnologia que acabou condicionando.

Hoje, estamos conectados 24 horas. Se você pede pra uma pessoa fazer uma entrevista de forma presencial, a pessoa, infelizmente… Ninguém quer mais o olhar, o sentir, ver as expressões que a pessoa faz, que falam tanto. Nós estamos assim, condicionados [a estarmos] sozinhos. Essa sensação de que estamos em perigo constante, de falsa facilidade que isso aqui (segura o celular) nos dá. A primeira coisa que você faz é tentar entrevistar por WhatsApp. Uma entrevista por WhatsApp é medonha. É medonha, é horrível, é ridícula.

Todos nós, seres humanos, no trabalho, nas universidades, nos nossos grupos sociais, estamos passando por um momento estranho da humanidade. Os próprios celulares, esses chamados de “telefones burros”, estão voltando com força total, porque ninguém mais aguenta ficar conectado o tempo inteiro. É uma coisa absurda, chata, porque você não tem ideia que você tá sendo usado e poucos conglomerados de comunicação naquele momento estão ganhando muito dinheiro com essa alienação. A gente não se dá mais conta disso. O nosso papel, enquanto docentes, é tentar quebrar mais essa barreira. Trazer as pessoas pra sala de aula, fazer eventos presenciais agora que é possível fazer, pra ter mais contato.

Acho que alguma coisa deveria acontecer pra que todo mundo parasse um pouquinho e analisasse, porque, na verdade, [neste momento] nós somos quase que robôs. Estamos condicionados a fazer aquilo que querem que a gente faça e acho que a gente não tá se dando conta disso.

A gente não tá vivendo, a gente tá sobrevivendo. No Brasil, especificamente, as pessoas estão sobrevivendo muito mal. A quantidade de brasileiros sem acesso à Internet é horrível. Por outro lado, essas pessoas estão fora dessa loucura, desse ambiente esquisito. Essa coisa opressora, eu diria, porque não é algo libertador, não é democrático.

São estabelecimentos. Poxa, vem ali do TikTok: “Ganhe 50 reais se você conseguir que não sei quantos amigos seus entrem e permaneçam conectados durante 30 minutos todos os dias”. Eu vou ter que convidar oito, dez amigos meus, e hoje é difícil você ter essa quantidade de amigos, vou fazer essa sacanagem com dez pessoas. Vou tornar dez pessoas viciadas no TikTok pra que eu receba 50 reais?


Após essa última fala, enquanto continuava a discussão sobre como temos nos comportado de maneira hiperconectada e automatizada enquanto indivíduos, o celular que estava gravando a entrevista desligou por falta de bateria, em torno de 15 minutos depois do mesmo ter acontecido com o computador.

No final do papo, que se prolongou por pelo menos uma hora, o professor comentou sobre a vontade de impulsionar a reaproximação das pessoas, trouxe lembranças do início da sua trajetória na profissão e reafirmou os seus posicionamentos a respeito do lugar crítico que o jornalismo deve ocupar na comunicação social.

Para a semana que vem, a Deriva segue o Oceano Atlântico até o continente europeu. Por indicação do entrevistado, a próxima pessoa a entrar na conversa é Ivana Ebel, coordenadora de graduação e pós-graduação do curso de Jornalismo na Universidade de Derby, na Inglaterra, e membra do Comitê Executivo da Academia Britânica de Jornalismo e Educação. Com as pontas deixadas abertas aqui, vamos amarrar novos nós e desatar alguns outros.

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