Brasil invisível: da escassez à ineficiência das políticas públicas no combate à dependência química

” […] Os próprios órgãos públicos te tratam como se fosse nada, parece que eles não querem que a gente se cure, mas também não querem que a gente seja visto.”

O sujeito sentado ao seu lado no metrô cheirou para acordar hoje de manhã; ou o motorista do ônibus que te leva para casa porque quer fazer hora extra sem sentir dor na cervical. As pessoas mais próximas a você cheiram. Se não é seu pai ou sua mãe, se não é seu irmão, então é seu filho. Se não é seu filho, é seu chefe. Ou a secretária dele, que só cheira aos sábados para se divertir.

O prefeito com quem você foi jantar cheira. O construtor da casa em que você mora cheira; o escritor que você lê antes de dormir cheira; a jornalista que você vai ver no telejornal, cheira. Mas se, pensando bem, você acha que nenhuma dessas pessoas cheira cocaína, ou você é incapaz de ver, ou está mentindo. Ou, simplesmente, quem cheira é você.

É assim que Roberto Silvano inicia seu livro de crônicas literárias. Esse é o retrato sincero do Brasil. É difícil olhar ao redor e encontrar alguém que não faça uso de substâncias psicoativas. No Brasil, a cocaína está entre as substâncias mais consumidas entre os jovens de classe média, de acordo com pesquisa das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC). Hoje, cerca de 18% da oferta mundial anual dessa droga é consumida por 2,8 milhões de brasileiros, ou seja, 1,4% da população.

Segundo pesquisas da Organização Mundial de Saúde (OMS), em média, 6% da população brasileira faz o uso de algum tipo de droga, caracterizando-se como dependente químico. Essa porcentagem refere-se a mais de 12 milhões de pessoas. Ainda de acordo com os dados da UNODC, cerca de 35 milhões de pessoas no mundo sofrem de transtornos causados pelo uso de drogas.

Com dispersão da Cracolândia em SP, usuários de drogas e traficantes se  espalham por diversos pontos do centro da cidade - Jornal O Globo
Cocaína é umas das drogas mais consumida no mundo. Foto: Edilson Dantas/Agência O Globo.

A dependência química é uma doença e é considerada um transtorno mental. Ela se caracteriza pela mudança de comportamento das pessoas ao administrar determinada substância e que, por consequência, acaba sendo dominada por impulsos recorrentes para voltar a fazer o uso da droga. Os entorpecentes se tornam um refúgio para essas pessoas na busca pela sensação de bem-estar, ou na procura de alívio de sentimentos ruins, como ansiedade e medo. 

Mas e as políticas públicas no combate à dependência?

O Decreto n° 9.761/2019, aprovado no dia 11 de abril pelo então Presidente da República, Jair Bolsonaro, prevê a criação da Nova Política Nacional sobre Drogas, que deve ser desenvolvida pelos ministérios da Cidadania, Saúde, da Justiça e Segurança Pública, dos Direitos Humanos, da Família e da Mulher. Este novo decreto visa à abstinência dos usuários como foco e não mas a redução de danos, como era previsto pelo Decreto n° 4.345, de 26 de agosto de 2002, assinado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A nova Política Nacional sobre Drogas indica que é necessário a construção de uma sociedade protegida do uso de drogas lícitas e ilícitas, além de deixar de focar na redução de danos passando a promover a abstinência. A pauta deixou de ser sobre saúde e virou apenas caso de segurança pública.

Durante cinco anos, as pessoas em situação de rua que eram dependentes químicos, em alguns casos eram retiradas das ruas de maneira forçada, afinal, o decreto previa que viver em uma sociedade livre dos usos de drogas lícitas e ilícitas seria o ideal. Para a coordenadora do Centro de Atendimento Psicossocial de Álcool e Drogas, Monalisa Lunardelli, as pessoas que negam o atendimento não devem ser forçadas. “A dependência química é uma doença e assim como qualquer outra doença o indivíduo tem o direito de não querer se tratar, essa vontade deve ser respeitada, somente o fato de usar substâncias psicoativas não justifica internação involuntária ou compulsória,” afirma Monalisa.

O Supremo Tribunal Federal proibiu em agosto deste ano o recolhimento forçado de bens e pertences de pessoas em situação de rua, a remoção forçada dessas pessoas dos espaços públicos e também o transporte delas para abrigos sem a sua autorização. Após anos, os ministros perceberam que esta não é a forma correta de combater a dependência química. O Ministro Alexandre de Moraes ainda deu um prazo de 120 dias para o governo federal apresentar um plano de ação e monitoramento.

Existem algumas instituições que proporcionam ajuda para dependentes químicos, como: Alcoólicos Anônimos (AA), Centro de Atendimento Psicossocial (CAPS), Centro de Atendimento Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS AD), Conselho Municipal de Políticas sobre Drogas (COMAD), entre outros. Esses grupos devem trabalhar na promoção de políticas públicas voltadas para o enfrentamento do problema das drogas em uma sociedade. 

Em primeiro lugar, é fundamental que tais entidades concentrem seus esforços na educação e prevenção, buscando informar os cidadãos sobre os riscos associados ao consumo de substâncias psicoativas. Isso envolve a criação de programas de conscientização em escolas e comunidades, bem como a disseminação de informações precisas e acessíveis sobre os efeitos das drogas, a dependência química e os recursos disponíveis para quem necessita de ajuda.

Mas, se os trabalhos de prevenção falham, as entidades devem atuar em outras frentes. O foco deve ser também na redução de danos e na ressocialização dos dependentes na sociedade em fase de tratamento. Porque a vida real não é para sempre dentro de uma clínica de reabilitação, ou com acompanhamento de um serviço antidrogas. A vice-presidente do Comad Brusque e escritora da dissertação “Políticas Públicas Sobre Álcool e Drogas: uma análise diagnóstica das políticas públicas implementadas no município de Brusque/SC,” Jacineide Khnis, explica que a reinserção na sociedade é falha.

“A lacuna é justamente essa, de não haver programa específico, ou que pelo menos esteja sendo utilizado neste sentido da ressocialização. Algumas casas de acolhimento fazem esse papel de forma intuitiva e comunitária, mas apenas isso,” destaca.

Então, o entendimento que se pode ter é que as políticas públicas de combate à dependência química, além de escassas, em sua grande maioria, não são eficientes. O investimento financeiro governamental em políticas públicas contra a dependência, de 2017 aos primeiros anos do governo Bolsonaro, caiu em mais de 75%. Eram investidos R$ 1,8 milhões no combate, e caiu para cerca de R$ 476 mil. 

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Era Bolsonaro dominou os investimentos a programas contra dependência química.  Foto: Carolina Antunes/PR.

A falta de investimento escancara o cenário assustador que o Brasil vive. Jacineide ainda ressalta que a escassez de recursos interfere diretamente na problemática. “A escassez de recursos destinados, no meu entendimento, interfere diretamente na problemática da dependência química. São os fatores que levam a pessoa a tornar-se dependente e são várias as frentes a serem observadas.” A vice-presidente do Comad finaliza chamando atenção para a falta de programas destinados a jovens.

A dura vida de quem luta diariamente contra a dependência química

A pesquisa feita pela UNODC ainda revela que no Brasil, quase 30 milhões de pessoas têm algum familiar que é dependente químico. E as políticas públicas afetam na pele as pessoas que convivem com o vício, ou quem já passou por tratamento. 

Em conversa com Pedro, nome fictício, um ex-dependente químico, fica claro o quão a falta de recursos afeta a jornada de recuperação. “É difícil. A luta consigo mesmo já é grande demais. O vício destrói sua mente. E encontrar barreiras na recuperação desestimula bastante.” O ex-dependente químico ainda completa:

“Existe um estigma muito grande em cima dos dependentes, e os próprios órgãos públicos te tratam como se fosse nada, parece que eles não querem que a gente se cure, mas também não querem que a gente seja visto na sociedade. Somos invisíveis. Já escutei que gastar dinheiro com ‘drogado e marginal’ era perda de tempo.”

Os dependentes muitas vezes não encontram oportunidades no mercado de trabalho. Talvez essa seja uma das principais formas de enxergar o preconceito contra essas pessoas. Eles são rotulados de “vagabundos” e encontram muitas portas fechadas na vida. E a falta de informação ajuda a perpetuar esse estigma. “Existe muito preconceito na sociedade, falta de informação e de entendimento quanto ao sofrimento do dependente químico. No CAPS AD eles têm oportunidade de ter um acompanhamento multidisciplinar, mas a questão é mais complexa,” reforça a coordenadora do CAPS AD, Monalisa Lunardelli.

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A luta dura contra dependência química. Foto: Divulgação/Internet.

Jacineide revela que é comum um paciente desistir do tratamento por conta da abordagem, ou pela demora, que ocorre por conta da falta de investimento. “Normalmente é a família que busca ajuda, mas quando o próprio dependente se dirige a UBS, é agendada uma consulta com o psiquiatra ou demais profissionais. Nesse meio tempo, o dependente desiste do tratamento. A solução seria que, assim que adentrar

Um dos tratamentos adequados em um nível altamente eficiente, seria a família toda acompanhar este paciente, ou até mesmo o sistema no qual ele está inserido fazer esse acompanhamento. Assim, é um estímulo e um suporte ainda maior para este paciente que busca a recuperação.

E as barreiras encontradas no processo não são poucas. Se por um lado, o tratamento em si já é complicado, o pós pode ser ainda mais doloroso. “O que mais me impactou foi após o tratamento. Parece que eu fui jogado na rua. Conseguir trabalho é difícil demais. E pensa, tudo isso tentando não recair no vício. É por isso que as pessoas não se mantêm sóbrias. Tudo estimula que a pessoa volte ao vício,” completa Pedro.

Apesar das dificuldades, ou melhor, aos trancos e barrancos os dependentes (sobre)vivem em uma sociedade que ainda não aprendeu a lidar com a doença. É necessário sonhar com um Brasil melhor, que ligue realmente para a causa e promova as políticas públicas.

Aos que se encontram em tratamento ou que ainda não acharam esse caminho, boa sorte. Ao país, sugerimos empatia.

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