A influência da descriminalização da maconha

A descriminalização do porte da maconha voltou a ser discutida em diversas esferas da sociedade, após o Supremo Tribunal Federal (STF) retomar o julgamento da ação que avalia se o porte de drogas para consumo próprio é considerado um crime. Entretanto, o tema não é tão recente. No próprio tribunal a ação começou a ser discutida em meados de 2015 e desde então tem sido um tema crescente em termos políticos, médicos e sociais. Até a publicação desta matéria, o placar da ação está 5 a 1.
Sendo um dos objetivos discutidos, a ação avalia como diferenciar um traficante de quem possui o porte apenas para consumo próprio, recreativo ou medicinal. O advogado Wendel Laurentino afirma que atualmente existe apenas uma lei em relação à posse de drogas, conhecida como “Lei de Drogas”.
“Ela é a única lei que regula o uso e a posse das substâncias. Atualmente, o crime que a pessoa estaria cometendo é portar a maconha. Inicialmente, a pena é de advertência, mas depois podem surgir outros tipos de sanções. É esse artigo que vem sendo discutido no STF”, afirma.
Wendel explica que se a votação terminar a favor da liberação, os crimes onde ocorre a posse da droga não irão à Justiça.
“Neste cenário [liberação], a pessoa que for pega com uma quantia de 25 a 60 gramas, ou que tenha seis plantas em casa, não estaria cometendo um crime. Tanto para uso medicinal quanto para recreativo”, explica.
Ele conclui dizendo que mesmo que a lei mude, ainda haverá brechas e caminhos a serem explorados.
“Se uma pessoa tiver sete plantas, será um crime? Ou a pessoa tem quatro plantas, mas elas são para o tráfico. Como fica? Cada caso é um caso”.
Criminalização da maconha
A relação do Brasil com a criminalização da maconha é antiga. Introduzida pelos escravos em 1549, teve o Brasil como o primeiro país a criminalizar seu porte, em 1830, por meio da Lei de Posturas criada na Câmara do Rio de Janeiro. O doutor em História, Eliton Felipe, afirma que ao longo da história, diversos acontecimentos moldaram o modo como a sociedade vê a cannabis.
“A cannabis é nativa da Ásia Central e do sul da Ásia, onde existe uma longa história de usos que remonta a milhares de anos. Os povos antigos já conheciam as propriedades medicinais e recreativas da planta. Os chineses, por exemplo, utilizavam a cannabis como planta medicinal há mais de 4.500 anos para tratar várias doenças e problemas de saúde, enquanto o cânhamo, fibra da planta, já era utilizado para a produção de cordas e tecidos há cerca de dez mil anos”.
Eliton conta que a planta chegou ao continente americano pelas mãos de escravizados vindos da África. Segundo ele, naquele momento era utilizada para aliviar doenças como asma, dores de cabeça e estômago, além do uso recreativo.
“Foi só no século XX que os Estados Unidos deram início à cruzada contra a cannabis. Hoje em dia, com novos estudos, a planta tem sido utilizada em muitos países para fins medicinais, recreativos e industriais e a legalização caminha para ser o padrão em boa parte do mundo”, conclui.
Movimentos Culturais
Nos anos 1960, a maconha influenciou a contracultura do movimento Hippie. Além de estar na vida dos jovens, a cannabis começou a ser discutida no meio político.
“Na mesma época, o exército dos Estados Unidos (país que proibia o uso da droga) distribuía cannabis entre os militares que lutavam na Guerra do Vietnã. Na década de 1990, em São Francisco, na Califórnia, o Cannabis Buyers Club foi pioneiro entre os clubes de maconha medicinal nos Estados Unidos, influenciando a aprovação da lei que legalizou o uso medicinal da erva no estado”, explica o professor.
Eliton cita algumas figuras públicas que defendiam o uso da cannabis e popularizaram a planta. “Acredito que os mais famosos tenham sido os músicos Bob Marley, que popularizou o uso da maconha entre os amantes do reggae, e Snoop Dogg, entre os amantes do rap”.
Custo na qualidade de vida
A visão da sociedade sobre a maconha passou por mudanças, principalmente no campo medicinal, onde diversas doenças graves passaram a ser tratadas à base de canabinol.
Porém, o processo ainda não está acessível a todos que precisam, uma vez que conseguir uma permissão para comprar canabidiol sem enfrentar problemas legais envolve a ajuda de um advogado especializado. O caso do pequeno Davi Lemke, que possui autismo severo, epilepsia, convulsões, crises anafiláticas, é um exemplo disto.
Cada frasco de canabidiol, que controla as crises de Davi e permite que ele tenha uma vida mais tranquila, tem um custo de R$ 2,4 mil. Para manter seu tratamento durante um mês, a família precisa desembolsar R$ 4,8 mil, sem considerar os outros gastos relacionados a medicamentos, consultas e terapias.
“Cada centavo gasto vale a pena”
A lista de problemas do menino de 7 anos não é curta. Porém, após anos buscando um medicamento que aliviasse os sintomas, os pais encontraram uma solução. Jéssica Lemke, mãe de Davi e moradora do bairro Itoupavazinha, em Blumenau, compartilha que as crises de Davi começaram quando ele tinha apenas 8 meses de idade.
Inicialmente, ele estava tomando Gardenal, mas, ao ser diagnosticado com autismo severo aos 1 ano e 7 meses, foi necessário mudar o tratamento.
“Experimentamos diversos medicamentos recomendados por médicos, mas nenhum deles surtiu efeito positivo. Davi sofria com crises epiléticas e convulsões quase diariamente, além de uma agitação intensa. Ele se machucava, se debatia, gritava e tinha dificuldade para dormir. Passamos muitas noites sem dormir”, relata.
Após inúmeras tentativas, um especialista sugeriu o uso do canabidiol. Segundo a mãe, a partir do terceiro dia de uso, Davi não teve mais nenhuma crise.
“Finalmente, conseguimos obter resultados positivos. Davi está se alimentando bem e dormindo à noite. Apesar do custo elevado, cada centavo gasto vale a pena. Criar dois meninos autistas é uma tarefa muito desafiadora”, conclui.
Tratamento para ansiedade
A psicopedagoga Amanda Verônica Leonardo, de 29 anos, que tem receita para canabidiol, conta que foi orientada por seu médico a fazer o tratamento.
“Eu estava me tratando com antidepressivos e ansiolíticos. O diagnóstico que tinha era ansiedade e depressão. Foi bem na época da pandemia, e todos os medicamentos me davam efeitos colaterais e eu ficava vegetando. Quando comecei com canabidiol, em dois meses já senti os efeitos positivos”, diz.
Amanda conta que quando comprou pela primeira vez o custo foi alto, e, por isso, não deu continuidade. Ela retornou ao tratamento em junho de 2022.
Desafios
Antes do tratamento, ela tinha sintomas como crises de taquicardia, pânico, enjoo e falta de apetite. Com o uso, ela conta que retomou a qualidade de vida.
Ela também foi diagnosticada com déficit de atenção e hiperatividade, e todos os medicamentos a deixavam mais ansiosa. “Tive muitas questões se iria me tratar [com o canabidiol] por causa desses momentos”.
Amanda conta que não teve dificuldades em conseguir o canabidiols. Ela diz que seu médico a encaminhou para um fornecedor que é regulamentado pela Anvisa, ou seja, bastava ter a receita para comprar.
“O maior desafio é o custo. Depois do primeiro uso, conheci outro fornecedor, também regulamentado, que era mais em conta. Eles trazem de Portugal e acabam fazendo por um preço mais barato”.
Dias de hoje
Ela conta que atualmente não faz mais uso do tratamento, porém, ainda tem a prescrição médica de um canabidiol um para um com Tetrahidrocanabinol (THC), ou seja, ele tem a mesma quantidade de THC e canabidiol.
“Quando estou tendo um dia mais atarefado ou estou muito cansada eu faço uso. O canabidiol em si eu parei e não tive mais os sintomas de ansiedade. Minha médica foi fazendo o desmame aos poucos, e hoje só tenho esse THC para casos específicos”.
Regulamentação
Sobre a legalização, Amanda afirma que o processo é importante para todos os fornecedores poderem ser regulamentados.
“A Anvisa acaba cobrando um valor muito alto, e por causa disso, muitos fornecedores não estão regulamentados. Eu passei por vários tratamentos alopáticos por não conseguir comprá-lo, e todos eles me deixavam muito mal. Acredito que com o canabidiol legalizado eu não teria passado por isso”.
Ela também diz que no caso de crianças que precisam do medicamento, o valor é mais alto pois ele é importado.
“Minha médica me receitou um tipo [da substância] porque sou adulta. Porém, para as crianças, onde é necessária uma dose precisa, o remédio vem de países onde já é legalizado”, finaliza.
“Foi difícil até para mim aceitar”
Sobre o preconceito relacionado à cannabis, Amanda conta que pessoas ao seu redor também tiveram dificuldades em aceitar o tratamento.
“Foi difícil até para mim aceitar. É algo que gera comentários do tipo “Nossa, é sério que você toma?”, mas, depois de um ano, foi perdendo o peso que tinha. Hoje uso de forma mais tranquila, mas, mesmo assim, não é algo confortável de se passar”, conta.