A arte de ser mulher

Como elas superam a árdua trajetória por voz e vez no território das artes. Um retrato marcado pelo passado e reinventado pelo presente

Não é novidade que ser mulher na nossa sociedade nunca foi algo fácil. Desde os primórdios, os modelos estruturais das diversas civilizações já existentes ao longo da história eram prioritariamente patriarcais, sendo caracterizados pela dominação e governança do homem em sociedade, enquanto as mulheres raramente tinham voz e vez.

E foi somente no século XVIII, após longos períodos de muita desigualdade e repressão, que passaram a surgir as revoltas e reivindicações da classe feminina por justiça e igualdade de gênero. Através da luta constante e de movimentos como o feminismo, que surgiu com força no final do século XIX e tinha como objetivo discutir e lutar pelos direitos femininos, as mulheres conquistaram, ao longo das décadas, o direito ao voto, ao divórcio, à educação, ao trabalho e diversas outras importantes conquistas que vieram com muito suor e sofrimento.

Mas apesar de todas essas conquistas, essa ainda é uma luta constante e diária. Vemos nos dias de hoje, em pleno século XXI, muitas mulheres que continuam sofrendo com repressão e falta de visibilidade, seja em seu local de trabalho, na rua ou até mesmo dentro da sua própria casa. Agora imagina ser mulher, levando em consideração todo esse contexto nada favorável, e ainda fazer e viver de arte. Com certeza, algo desafiador.

A arte, por ser uma forma de expressão e criação orgânica, livre de quaisquer rótulos e muito abrangente em sua variação, também é muito discriminada e desvalorizada pela sociedade. E uma prova disso são os ilustradores incríveis, músicos talentosos e escritores excepcionais que, mesmo com tanta habilidade, acabam passando necessidade e não têm seu trabalho valorizado, pois muitos ainda não consideram a arte um trabalho. Visões claramente equivocadas e distorcidas, levando em consideração que um artista precisa de esforço e dedicação assim como um médico, e que mulheres podem criar e disseminar arte da mesma forma (e muitas vezes até melhor) que um homem.

Um exemplo prático dessa falta de visibilidade feminina no campo das artes pode ser visto a partir da própria história. Ao visitarmos museus, podemos notar que a maior parte das obras expostas foram feitas por homens. E isso não significa, nem de longe, que as mulheres não realizassem obras artísticas boas o suficiente para ganhar espaço nas galerias de arte do mundo. Mas, que, na época, o simples fato de uma mulher demonstrar interesse por questões artísticas já era motivo para discriminações e até mesmo agressões verbais ou físicas. É triste, mas uma realidade, que o número reduzido de mulheres artistas não se deve a falta de talento, mas sim às restrições e falta de oportunidade impostas pela sociedade ao longo das décadas.

Apesar de todo esse passado cheio de marcas, é importante destacar que existem muitas mulheres fortes que, mesmo com todas essas adversidades e preconceitos, buscam a sua voz e disseminam a sua arte sem medo, com muita luta e maestria.

Uma barca de mulheres em brasa

Foto: Sarau da Tainha

Um grupo de mulheres que representa perfeitamente essa potência da força e da voz feminina é o coletivo A Brasa Barca. O projeto tem como intuito a imersão artística através da poesia e de vivências compartilhadas por mulheres que, a partir da literatura e da arte, buscam a sua voz em meio às rimas e estrofes, que se misturam com as vozes umas das outras, criando assim um lindo soneto de fortalecimento.

“É uma retroalimentação de inspiração e trabalho que nos move a criar e colocar nossa voz poética no mundo em uma comunicação que cresce e prolifera. E assim, proliferamos amor, erotismo, revolta, desejos, pensamentos políticos, enfim, poesia… E de repente, pode ser apenas uma barca compartilhada de fortalecimento feminino, simples assim, sem pretensões além de sermos amparadas e ampararmos umas às outras”, explica a jornalista Luciana Tiscoski, representante do coletivo.

Mesmo com tanta força, essas “disseminadoras de poesia”, como elas mesmas se intitulam, ainda enfrentam alguns obstáculos no seu fazer artístico e poético. “O principal é a falta de autoconfiança alimentada por um machismo estrutural, uma lógica utilitária da vida, uma inadequação às imposições de um relógio mercadológico de produção. A esta dificuldade respondemos com nossa voz, entre nós, ou nas redes, nos livros, nos bares, em volta de fogueiras, chamando outras mulheres a romperem com a mudez e com o envenenamento causado pela milenar estrutura branca heteronormativa fálica e falida”, complementam.

O coletivo realiza todas as suas atividades em grupo, como os saraus, performances, publicações, encontros íntimos que funcionam como laboratórios de criação e que pretendem, futuramente, se transformar em oficinas abertas ao público, para que a sororidade feminina se expanda e alcance ainda mais mulheres.

Foto: Coletivo A Brasa Barca

“Individualmente, temos nossos trabalhos como escritoras e uma multiplicidade de tarefas na área acadêmica como pesquisadoras, estudantes, professoras, mas também somos revisoras de textos, jornalistas, antropólogas, atrizes, mães, amantes, amigas, artistas… mulheres”, afirmam.

E não podíamos falar de poesia pura e transformadora sem ao menos deixar um gostinho que represente essa intervenção artística. Quando questionadas sobre qual poema melhor descreveria o grupo e o recado que o coletivo pregaria para todas as mulheres, nos deparamos com a belíssima obra de arte abaixo, escrita por Glória Anzaldúa:

Por que ainda sou levada a escrever?
Porque a escrita me salva da complacência que me amedronta.
Porque não tenho escolha.
Porque devo manter vivo o espírito de minha revolta e a mim mesma também.
Porque o mundo que crio na escrita compensa o que o mundo real não me dá.
No escrever coloco ordem no mundo, coloco nele uma alça para poder segurá-lo.
Escrevo porque a vida não aplaca meus apetites e minha fome.
Escrevo para registrar o que os outros apagam quando falo, para reescrever as histórias mal escritas sobre mim, sobre você.
Para me tornar mais íntima comigo mesma e contigo.
Para me descobrir, preservar-me, construir-me, alcançar autonomia.
Para desfazer os mitos de que sou uma profetisa louca ou uma pobre alma sofredora.
Para me convencer de que tenho valor e que o que tenho para dizer não é um monte de merda.
Para mostrar que eu posso e que eu escreverei, sem me importar com o suspiro de ultraje do censor e da audiência.
Finalmente, escrevo porque tenho medo de escrever, mas tenho um medo maior de não escrever.

Seja na escrita, nas artes visuais, plásticas, performáticas, na música ou no teatro. O fato é que as mulheres têm cada vez mais mostrado delimitado o seu espaço na arte.

Mostra Camaleoa

Foto: Nectar Photography

Outro exemplo de grupo que faz jus a essa visibilidade é a Mostra Camaleoa – Mulheres Fazendo Arte, um evento artístico de dança, música, teatro e artes visuais totalmente idealizado, produzido e executado por mulheres, desde a parte artística até as funções técnicas e burocráticas.

A última edição da mostra ocorreu nos dias 16, 17 e 18 de agosto, em Balneário Camboriú, com um total de 4 ações formativas, 5 ações performáticas e 1 roda de conversa ministrada por diversas artistas, de atrizes a grafiteiras. O intuito do evento é, mais do que apenas reunir mulheres artistas, proporcionar um espaço de imersão e experiência, compartilhando e disseminando vivências com todas os participantes, através de práticas como a fotografia, o teatro, a música, o grafite, a dança, a dramaturgia e o diálogo.

“Mais do que nunca, sentimos a necessidade e a importância de nos conhecermos mais, nos unirmos e sabermos o que está sendo criado por mulheres Brasil afora e pelo mundo”, explicam as organizadoras da mostra Beatriz Gonçalves e Thaina Gasparotto.

Foto: Nectar Photography

Um aspecto positivo que vale a pena ressaltar é a viabilização da mostra pela Lei de Incentivo à Cultura (LIC) através do apoio da Fundação Cultural de Balneário Camboriú (FCBC), que auxilia grupos culturais como este, e muitos outros, a expandirem sua ações e se manterem vivos.

“Foram momentos de muita conversa, autocrítica e fortalecimento de redes. Acreditamos firmemente nas trocas que esses encontros podem gerar e na importância em levar adiante as informações adquiridas a partir das diferentes vivências que estiveram presentes durante o evento”, explicam as idealizadoras do projeto.

A arte que TRANSforma

Foto: Arquivo Pessoal

Mas e quando o preconceito artístico ainda vem atrelado com um preconceito de gênero? Esse é o caso da artista Trans Maria Vitória, que apesar da discriminação que sofre pela sua identidade de gênero, encontrou na arte e no teatro uma forma de poder ser quem ela é.

“A arte transformou minha vida de duas formas, a primeira foi me mostrando um mundo onde eu poderia ser quem eu quisesse. Depois, na certeza da artista que eu era, pude me encantar pela arte novamente.” afirma.

Porém sabe-se que os transexuais são aqueles que, dentre todas as minorias, são os que mais sofrem preconceitos e intolerâncias. Segundo dados da ONG Transgender Europe (TGEU), o Brasil continua a ser o país onde mais transexuais são mortos, somente entre 1º de outubro de 2017 e 30 de setembro de 2018, 167 transexuais foram mortos no país. E levando em consideração todos esse dados, podemos afirmar que, infelizmente, na arte não é diferente.

“Já saí de um grupo de teatro por transfobia. O diretor exigia que eu não fizesse papel feminino pois pra ele eu não era uma mulher”.

No antepassado da história, por muitos anos, apenas os homens eram permitidos de atuarem em espetáculos, ao ponto que caso algum personagem feminino precisasse ser interpretado estes utilizavam máscaras para representar as mulheres. E as raízes de todo esse preconceito infelizmente ainda podem ser vistas e sentidas nos dias de hoje. Em um país cuja transfobia é tão descarada e violenta, é mais do que urgente que esses grupos tenham seu espaço e seus corpos sejam naturalizados e humanizados, tanto dentro como fora da arte!

“O que me motiva é saber que ninguém é tão bom para ser colocado num pedestal, nem tão ruim a ponto de ser morto…Dessa forma todo mundo pode e tem o direito de largar esse preconceito besta contra pessoas trans. Vou lutar pra que isso aconteça”, finaliza.

Reportagem produzida para a disciplina de Jornalismo Especializado, do 5º período do curso de Jornalismo da Univali, sob supervisão do professor André Pinheiro.

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