Ivana Ebel: “Uso o meu espaço aqui fora pra pesquisar assuntos que, no Brasil, são mais difíceis”


Na Deriva, esta série de entrevistas do Jornal Cobaia, que iniciou há alguns dias com a conversa com o professor Carlos Praxedes, a entrevistada da vez é a jornalista egressa da Univali Ivana Ebel, que hoje é doutora em Comunicação pela Universidade de Leipzig (Alemanha) e coordenadora do curso de Jornalismo na Universidade de Derby, que leva o nome da cidade em que é localizada, no condado de Derbyshire, no leste da Inglaterra.
Falamos sobre as diferenças entre a realidade inglesa e a brasileira, principalmente a respeito do ensino superior e do lugar que o jornalismo ocupa nele, sobre certos aspectos políticos atuais e como a Ivana, como brasileira, se relaciona com isso vivendo há 14 anos no exterior.
[Deriva] Ivana, antes de tudo, falando como estudante pra alguém que já ocupou esse lugar na mesma Universidade há 20 anos, como foi sua trajetória de lá até aqui?
[Ivana Ebel] Eu passei no vestibular, tanto pra Publicidade na FURB (Universidade Regional de Blumenau) quanto pra Jornalismo na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), mas, por várias circunstâncias pessoais e familiares, eu não pude ir pra Floripa, porque, na época, era uma coisa bem cara e inacessível. Eu venho de uma família que não chegava a ser pobre, mas a minha mãe era professora e o meu pai era funcionário público, não de chefia, de um cargo bem baixo, então eu não tive como ir pra lá.
Comecei fazendo Publicidade na FURB e o que aconteceu foi que, no meu primeiro semestre no curso, o meu professor de Redação Publicitária, por acaso, não era publicitário, ele era jornalista. Talvez já tenha ouvido falar dele, o nome dele é Clóvis Reis. E ele me convidou pra conhecer a redação [do Jornal de Santa Catarina], porque eu falei “Olha, na verdade, sempre quis ser jornalista, não publicitária, mas [estamos na área de] Comunicação, tá todo mundo aí e tal”. Eu fui, fiquei lá e me mandaram junto com um repórter pra eu ver como ele fazia e o editor-chefe na época falou assim: “Então escreve uma história!”. Eu escrevi e eles publicaram. Não só publicaram, como publicaram assinada, com duas páginas, no jornal de domingo. A minha primeira história publicada foi no dia 12 de junho de 1994 e era sobre pessoas que têm o hábito de colecionar coisas, [sobre] o porquê as pessoas colecionam coisas.
O que aconteceu foi que eles tinham estagiários naquela época, que tavam no fim do curso e eu tava no primeiro semestre. Só que um deles quebrou a perna e desistiu e, como eu já tava lá, eles me contrataram e as pessoas ficavam debochando dizendo que quem tinha quebrado a perna do estagiário era eu. Não quebrei a perna de ninguém (dá uma risada).
Mas foi assim que tudo começou. E aí, dentro [da área], eu cresci muito rápido. Um ano e pouco depois (quando já havia feito a transferência para o curso de Jornalismo na Univali), eu tava editando variedades e comportamento. Na época, um dos editores-chefes voltou pro Rio Grande do Sul e me ofereceu uma oportunidade de trabalhar lá. Por isso eu saí da Univali, parei e fui trabalhar num jornal de lá. Fiquei vários anos trabalhando, depois voltei pra Blumenau, voltei pra Univali e me formei.
Eu comecei a trabalhar como jornalista antes de começar a faculdade de Jornalismo, então me fez ter um entendimento muito grande da importância das coisas que eu tava aprendendo na Universidade. Porque eu via a prática no meu dia a dia, mas, a Universidade me dava uma base teórica e cultural pra entender o que eu tava fazendo, pra entender por que o jornalismo funciona do jeito que ele funciona.
Pra mim, foi maravilhoso, porque eu pude me dedicar muito mais a esses aspectos do que ao fato de ter que aprender a escrever um lide, aprender a escrever uma história, porque isso eu já fazia profissionalmente. Eu tenho lembranças maravilhosas do meu período na Univali. Tenho muita saudade dos anos que eu passei aí, foram anos muito bons.
Basicamente, eu nunca deixei de trabalhar com jornalismo. Depois, fui trabalhar com relações públicas e cheguei a fazer assessoria de imprensa na época do Governo Luís Henrique [da Silveira]. Mas sempre tive vontade de morar no exterior, sempre tive vontade. Aí chegou uma hora que eu cansei e falei: “É agora ou nunca”. Eu já tava com 32 anos quando eu larguei o emprego em que eu era gerente de rádio da Secretaria de Comunicação do Estado, que é um emprego legal, me mudei pra Alemanha pra fazer mestrado e virei estudante de novo.
Fiz o meu mestrado, trabalhei como jornalista internacional na Deutsche Welle durante alguns anos, [concluí o mestrado] e nesse meio tempo comecei o meu doutorado. Saí da empresa pra poder terminar o doutorado, já dava aula na Alemanha quando isso aconteceu, e acabei recebendo essa proposta de trabalho no interior da Inglaterra em 2016. Me mudei pra cá e tô na Universidade aqui até hoje, onde eu coordeno o programa de Jornalismo. Coordeno o curso, o mestrado e implementei os primeiros doutorados, supervisionando vários deles. O doutorado aqui não faz parte do programa, são supervisões independentes e eu supervisiono a maioria delas. É isso (recupera o fôlego e dá uma risada).
[D] Quando o Praxedes indicou o seu nome, e eu vou citá-lo com alguma recorrência aqui porque a ideia é justamente que a gente traga pontos de uma conversa pra outra, eu perguntei “Por que a Ivana?” e ele mencionou o cargo que ocupa na Universidade de Derby e ele falou “Principalmente, porque a gente tem diferenças significativas no ensino de Jornalismo na Inglaterra e no Brasil”. Então, gostaria de perguntar: quais são essas diferenças?
[IV] Até tem aí uma coisa interessante. A reunião que eu tava, que atrasou essa entrevista, foi exatamente uma com as lideranças e a equipe da coordenação de programa do curso de Jornalismo, em que a gente tava reestruturando o curso aqui na Universidade. A gente tava desde às 10 da manhã no encontro, sem parar, e terminou agora (mais de quatro horas depois) que eu falei contigo. Foi bem intenso.
A diferença começa assim… Pra mim, foram dois choques culturais: primeiro, quando me mudei pra Alemanha, onde vivi oito anos, e lá o jornalismo não exige uma formação acadêmica. Jornalista é qualquer pessoa formada em qualquer área, inclusive não existe faculdade de Jornalismo lá, existem cursos de Mídia e Comunicação, que são áreas relacionadas. Mas, no geral, esses profissionais são formados em Letras, em Economia ou em outras áreas e o treinamento pra se tornar um jornalista é algo mais prático, no jornalismo “escrito”, digamos assim. No jornalismo de broadcast, áudio, vídeo e afins, a pessoa se forma em Televisão e Cinema, mas não existe o curso de Jornalismo. Não existe essa tradição.
Uma coisa que é comum, tanto na Alemanha quanto aqui no Reino Unido, diferente do Brasil, é que aí, quando a gente se forma em Jornalismo, nós somos jornalistas, e aqui não. O jornalismo é uma definição passageira. Você está jornalista, você não é. O jornalista é quem faz jornalismo, quem trabalha com produção de notícias, sejam elas pra qualquer plataforma, mas a pessoa tem que estar ativamente produzindo conteúdo. Por exemplo, eu sou formada na área, mas atualmente sou professora. Aqui, eu não tenho direito a ter a carteira de imprensa, não trabalho pra nenhum meio de comunicação. A mesma coisa na Alemanha, só se é jornalista enquanto se tem essa função ativa na produção de conteúdos noticiosos. Essa é uma diferença bem grande.
A outra diferença é em termos de formação. Na Alemanha, as pessoas fazem faculdades em outras áreas, mas aqui no Reino Unido não. Já existem, sim, várias faculdades de Jornalismo, mas os cursos são extremamente práticos. As disciplinas mais teóricas, que nós temos num curso, como eu já tive na Univali, [de] Teoria da Comunicação, Comunicação Comparada, são disciplinas que [aqui] pertencem ao curso de Mídia e Comunicação. O curso de Jornalismo aqui são três anos só. Em cada ano, os alunos têm seis módulos e é isso. São 18 módulos e acabou. É um curso muito intenso, no sentido da quantidade de conteúdo que é empacotada e entregue em cada um desses módulos, mas o número deles é muito pequeno. É o que a gente tava tentando fazer hoje: ver como colocar todo esse conteúdo numa quantidade tão pequena de módulos e créditos, que é muito diferente do que é no Brasil.
[D] Eu tinha impressão, inclusive, de que talvez fosse o contrário. É super curioso escutar agora e saber que não. Porque, por vezes, eu tenho a percepção que o curso aqui tem se tornado mais técnico, principalmente se a gente compara o período em que Comunicação Social abrangia todas as áreas.
[IV] Na minha época, eu fiz Comunicação Social com habilitação em Jornalismo, então ainda peguei antes das reformas curriculares, porque já faz bastante tempo que eu me graduei. Mas, eu diria que aqui os cursos são extremamente mais técnicos e o curioso é [que] os alunos têm 12 horas de aulas por semana. São três dias com quatro horas de aula [cada]. Isso num curso de período integral. E são só 12 semanas de aula por semestre.
Existe uma expectativa muito grande de que o trabalho seja feito de forma independente. Os cursos não têm provas, então a quantidade de trabalhos que a gente espera que os alunos façam é muito grande. Eu diria que essa é a compensação da carga-horária: o aluno tem que estudar muito mais de forma independente. Ele recebe muito menos em horas em que a gente tá junto, mas muito mais no sentido do que ele tem que se dedicar fora da sala de aula pro curso.
[D] Indo por esse caminho, ainda falando sobre os aspectos acadêmicos, aqui a gente começa, dentro das universidades, a pensar criticamente as questões que envolvem a área da Comunicação. Como enxerga que isso se dá num curso mais técnico?
[IV] Os debates acontecem dentro das disciplinas, claro, mas, no Brasil… É muito relativo eu falar da formação em Jornalismo aí porque tô falando sobre ela há 20 anos, que foi quando eu me formei, então a minha visão é absolutamente antiquada, porque se refere à minha própria experiência. Eu não estudo hoje como é o ensino de Jornalismo no Brasil, não sei quais são as adaptações curriculares e mudanças que tiveram. Mas, eu diria que [o que mostra] a minha experiência até agora é que existe uma conexão muito maior com o lado acadêmico da coisa ainda, onde as discussões teóricas acontecem de forma mais intensa na universidade brasileira.
Aqui a coisa é muito mais prática, voltada à empregabilidade. As universidades aqui têm uma competição muito gigante de rankings e coisas do gênero, em que elas ganham pontos pelos índices de empregabilidade que elas oferecem. Tipo “Ah, 80% dos nossos alunos tão trabalhando na área depois que se formam, num período de seis meses”. São feitas essas pesquisas. A gente trabalha muito com essa coisa de rankings aqui, então a gente tem uma preocupação muito maior com empregabilidade do que com essas discussões mais retóricas em sala de aula.
[D] A Universidade de Derby é pública?
[IV] Ela é uma universidade pública, sim, mas as universidades públicas no Reino Unido são pagas também. A diferença é que elas são pagas de uma forma indireta. Todo inglês, todo britânico, tem direito de fazer universidade e recebe do governo dois tipos de financiamento: um que paga as mensalidades e outro pra custear os gastos como aluguel, comida… A pessoa pode optar por pegar esse financiamento pra custeio de vida ou não, ou pegar só o da mensalidade. É muito relativo.
O que acontece é [que], [somente] quando ela passa a ganhar mais do que um certo tanto, ela começa a pagar isso de volta. O pagamento é muito facilitado. Até tem dados de pesquisas, que não sei direito, mas [que mostram que] mais da metade das pessoas não chegam nunca a pagar de volta tudo o que pegaram emprestado do governo. Então, ela é paga, mas o dinheiro não sai do bolso e, quando começa a sair, não é que nem as dívidas estudantis dos Estados Unidos, porque é conectado ao valor do salário que a pessoa ganha e tem um teto que é muito pagável. Ninguém fica endividado por conta do crédito estudantil como acontece nas universidades americanas, por exemplo.
[D] Ainda falando sobre essa relação entre o Brasil e a Inglaterra, numa pesquisa breve que fiz sobre a sua trajetória acadêmica, vi que volta e meia tem alguma cooperação com universidades brasileiras ou algum tipo de pesquisa que é desenvolvido aqui. Eu gostaria que comentasse sobre essa cooperação que acontece entre o trabalho que faz no exterior e essa volta que acontece com alguma recorrência ao Brasil.
[IV] Eu me considero uma pessoa bem camaleoa assim. Me adapto muito facilmente aos novos ambientes em que tô inserida. Tento me inserir culturalmente, socialmente, da melhor forma possível, mas essa inserção não significa uma desconexão ou uma aniquilação da minha cultura original. Eu tento manter isso vivo. Apesar de eu viver muitos anos fora do Brasil, eu saí do país em 2008 [e] desde então só voltei pra cooperações, a minha conexão ainda é muito forte e eu tento usar o meu espaço aqui fora pra pesquisar assuntos, temas e situações que, às vezes, dentro do país, principalmente pela situação atual, esse retrocesso social, essa volta ao pensamento da Idade Média, esse apagamento cultural que o Brasil vive, [são mais difíceis].
Uma pesquisa recente, que eu fiz em parceria com outra pesquisadora brasileira, baseada em Berlim, a Janara Nicoletti, que é também egressa da Univali e fez o doutorado dela na UFSC, [foi] sobre a liberdade de expressão dos professores de Jornalismo no Brasil por conta do bolsonarismo. [Nela,] a gente chegou num número bem preocupante de que 72% dos professores de Jornalismo no Brasil se autocensuram pra evitar serem expostos ou receberem retaliações nas mídias sociais ou corram o risco de perder o próprio emprego, coisas assim. Setenta e dois por cento das pessoas pensam duas vezes antes de falar, quando o jornalismo é uma área em que a exposição do contraditório é absolutamente relevante. É necessária e isso, de fato, não acontece.
Esse é um assunto que eu posso falar abertamente. Eu tenho uma posição de poder entrar pessoalmente, dar uma palestra numa universidade e fazer críticas pesadas à situação política do Brasil, porque eu não vou perder o meu emprego por causa disso, porque ninguém vai me xingar. Quer dizer, xingar as pessoas xingam, mas o que quero dizer é que a minha vida não tá em perigo, de certa forma, como a vida de outras pessoas estaria. Assim como eu posso pesquisar sobre feminismo, posso falar sobre questões que não necessariamente pesquisadores no Brasil têm a mesma liberdade. Então, essas cooperações se dão muito [por conta] disso, da tentativa de usar um espaço de privilégio que eu tenho pra dar voz a temas que talvez não se tenha tanta liberdade hoje em dia no Brasil pra falar. Por isso eu acabo sempre voltando ao ninho.
[D] Lendo esse dado sobre a autocensura, puderam perceber outros aspectos qualitativos? Por que ela se dá? Gostaria que comentasse mais sobre essa pesquisa.
[IV] As principais agressões sofridas por professores vêm por parte de alunos e do próprio governo, [esses] são alguns dados da pesquisa. Enquanto falo contigo aqui, vou tentar abrir o arquivo (passa a procurar o documento pra citar as informações).
Um em cada três professores de Jornalismo já sofreu algum tipo de assédio ou violência por parte de algum colega do departamento e um em quatro já foi assediado ou agredido por estudantes fora da sala de aula. Quase 44% dos professores já receberam retaliações por conta de conteúdos que eles expuseram dentro da sala de aula e um em cada três professores já sofreu ataques online por conta disso. Setenta e dois por cento censuram conteúdos das suas próprias aulas e em torno de 20% deles já sofreram algum tipo de deslegitimação nas mídias sociais, com fake news, memes, críticas sobre o trabalho deles ou falas descontextualizadas.
A principal fonte de opressão citada pelos professores é o Ministério da Educação. Quarenta por cento deles se sentem oprimidos pelo órgão, 39% pelos políticos e 30% pelos estudantes. Noventa e cinco por cento de todos os professores falaram que mudaram as aulas pra online por conta da Covid, durante a pandemia, e mais da metade, com isso, se considerou muito menos autônoma do que era antes, porque tinham muito medo de que as aulas gravadas pudessem ser cortadas e tiradas do contexto e as falas deles usadas em forma de agressão.
Acho que esses são os números mais relevantes dessa pesquisa, que foi feita com a doutora Janara Nicoletti.
[D] Voltando à conversa com o Praxedes, nós falamos sobre a crise do jornalismo no Brasil e sobre como, ao menos na opinião dele, embora acredite que seja um consenso geral, essa é uma crise de legitimidade. Esse fator é provocado por questões externas, como o próprio governo, mas, anterior a isso, parece ser por um distanciamento da população. Como vê esses pontos de fora?
[IV] Sim, eu diria que é um tripé e uma das pontas é justamente isso que o Praxedes colocou dos grupos hegemônicos e do controle da mídia, que faz o que bem entende, manipula as informações e, com isso, perde a legitimidade, etc. Mas tem outros dois tripés que faltam mencionar.
Um deles é a falta da regulamentação da mídia no Brasil. Quando se fala nisso, existe muita gente que começa a espernear e falar que é censura. Mas, na verdade, não é isso. Regulamentação da mídia é o ponto de encontro onde se estabelece padrões éticos pra se poder avançar. Com uma mídia regulamentada, ela não pode fazer simplesmente o que bem quer. Ela passa a ter que seguir códigos e leis, senão ela é multada. A gente não pode ter uma capa da IstoÉ colocando a Dilma [e] falando sobre “surtos” da [ex-]Presidente e coisas do tipo, como aconteceu, se a gente tem uma mídia regulamentada. Esse tipo de coisa não vai acontecer. Quer dizer, pode ser que aconteça, mas não vai ser impune, como acontece no Brasil. [Sem isso,] o compromisso com a verdade deixa de existir e existe só um compromisso com a “verdade” financeira, digamos assim.
A regulamentação da mídia, por exemplo, no Reino Unido, e nesse ponto agora eu falo sobre a mídia impressa de modo especial, é muito diferente. Ela é autorregulamentada, não é regulamentada pelo governo. Os próprios editores de jornais e revistas se reuniram e criaram uma instituição, que tem poder de multar em até um milhão de libras os veículos de comunicação que infringem certas regras. Eles criaram o que chamaram de Código dos Editores (The Editors’ Code of Practice) e os veículos de comunicação sentaram e falaram “Nós concordamos com isso e seremos julgados por ele”. Essa entidade se chama IPSO (Independent Press Standards Organisation) e ele autorregulamenta a mídia no Reino Unido.
Então, essa falta de regulamentação da mídia brasileira é que faz com que essas barbaridades ocorram e não sejam punidas. Não que barbaridades não ocorram aqui, o Reino Unido é famoso pelos tabloides e coisas do gênero. Ocorrem várias, mas são punidas e elas têm um custo financeiro bem pesado pra quem as comete, o que não acontece no Brasil hoje.
O terceiro tripé tá diretamente conectado com a diferença social que existe no país, com a pobreza, com o problema de distribuição de renda, porque isso se liga com o analfabetismo digital. Ou as pessoas são analfabetas digitais ou são excluídas do ambiente digital. A gente tem as duas situações no Brasil. Essas pessoas que não têm acesso à informação e, quando têm, não sabem filtrar o que é verdadeiro e o que é falso, esse é um outro grande problema.
Esse tipo de problema de distorção de conteúdo, de jornalismo tendencioso, de falta de credibilidade [se dá] por causa de todos os problemas que o Praxedes citou, mais a falta de regulamentação, mais a diferença social. Nos países onde a desigualdade é menor, onde as pessoas têm um acesso mais nivelado aos recursos e às informações, as instituições de imprensa e mídia não tem uma lacuna tão assombrosa, não existe uma falta de credibilidade tão assombrosa justamente porque as pessoas têm essa capacidade de discernimento do que é verdadeiro ou falso, na minha opinião.
[D] Quando a gente compara a imprensa brasileira com a de outros países, principalmente com os europeus, e fala sobre a recepção a ela, se tende a falar sobre isso como se as pessoas fora fossem “mais capazes” de absorver as informações de uma forma “legítima” ou como se o povo brasileiro não ligasse pra certos aspectos, quando a gente sabe que existem várias características sociais e econômicas que tão nesse meio. Por vezes, eu vejo isso como se a gente estivesse agindo por meio do discurso em prol de um olhar colonial. O que pensa sobre isso?
[IV] Existe um ditado inglês que fala que não se pode comparar peras e maçãs. Não se pode comparar coisas diferentes. Como pode exigir [que sejam iguais], mesmo em nível de interpretação de texto, [os resultados] de alguém que estudou na Escandinávia e alguém que estudou no Brasil, onde os dados do Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes, em português), que é o teste que mede esse tipo de capacidade, colocam a gente como os piores no mundo nisso? Isso não tem a ver com a capacidade intelectual dos indivíduos, tem a ver com acesso a serviços básicos desde alimentação, porque quem não come não estuda e quem não estuda não… E por aí vai.
A gente tá falando de direitos fundamentais. Como podem querer comparar alguém que nunca teve que se preocupar com como chegar na escola, teve acesso a computadores, escolas com ambientes climatizados e refeições com alguém que pega três barcos, não sabe se pode ir ou não porque tem que trabalhar pra ajudar a família, vai pra escola sem comer, não tem merenda e a professora da escola tem a quarta série primária às vezes, sabe? Não tem como comparar.
Não se trata da comparação de um povo ser melhor que o outro, porque isso não existe de forma nenhuma. O que existe é um povo ter mais acesso que outro, por conta até de um processo colonialista, de uma divisão de bens e recursos, especialmente entre os países que estão ao Norte e ao Sul, que é gritante e vem de um processo histórico de exploração, que nem cabe a gente aqui discutir. O Brasil não é pior porque decidiu ser pior. A gente tem centenas de fatores, milhares, que contribuem nesse processo.
[D] Fico pensando sobre essas relações e como a compreensão de alguns textos, de algumas formas de comunicação, tem a ver com a forma como se comunica. Quando a gente fala sobre a falta de interpretação, talvez a gente esteja falando sobre a falta de interpretação dessa mídia dominante, mas que outros tipos de mídia conseguem se fazer compreensíveis de uma forma mais adequada. Concorda com essa suposição?
[IV] Sim, claro. Até teve um estudo bem engraçado, que eu li faz muito tempo, não vou lembrar quem fez ou os detalhes disso, mas eu lembro de alguma coisa parecida assim… Pegaram o texto de quando vai se ensinar as crianças a ler [e ele seguia assim]: “a de amora”, “b de banana” e, quando chegava no c, era “c de caju”. Beleza, tem gente que, no Norte e no Nordeste, tem caju como parte da cultura. Agora as crianças no Sul não sabiam o que era caju, “c de caju” não fazia o menor sentido pra elas. [Se falassem] “c de casa”, faria sentido.
Não era o caju, mas era um exemplo de que, quando a gente modela a comunicação de uma forma que não é compreensível pras pessoas de forma geral, a gente não tá comunicando, a gente tá criando um discurso vazio. Esse é um problema bem grande que existe entre a universidade e a vida real, de certa forma, especialmente no Brasil onde as políticas de inclusão não são suficientes.
Pra reduzir todas as desigualdades históricas que o nosso país tem, elas deveriam existir de forma muito mais intensa. Cotas e ProUni são coisas que foram criadas pra tentar reduzir isso e fizeram uma gotinha no oceano. Enquanto a gente realmente não tiver processos de inclusão pra uma igualdade de gênero, raça, cor, classe econômica e etnia, a gente vai formar jornalistas que falam com pessoas que são iguais a eles. As pessoas falam com o próprio espelho. Existe um erro muito comum quando a gente se comunica, de achar que a gente tá se comunicando com alguém que vai entender o que a gente tá falando.
Uma pessoa que eu conheço me contou uma vez uma história sobre um voluntário que tava participando de uma campanha de vacinação e a pessoa falava assim “Olha, quando eu pingar a vacina na boquinha da criança, a senhora não dê o bico pra ela porque tem que dar um tempo pra que a criança possa absorver a vacina”. A pessoa deu a vacina e a mãe enfiou o bico na boca da criança, aí a pessoa disse “Não, não pode por o bico porque tem que absorver” e nisso chegou alguém que trabalhava no postinho e falou: “Mãe, não põe o bico porque o corpo da criança tem que chupar a vacina antes”. A mãe não entendia a palavra absorver, e a pessoa que tava ali voluntariando, querendo fazer o bem, não conseguia entender. Não existia uma comunicação ali, porque a pessoa não conseguia entender determinados vocabulários.
Esse é um erro muito grande no jornalismo. A partir do momento que a gente não tem essa diversidade dentro da universidade, a gente se forma e não comunica pra grande população. E, quando a gente não comunica pra todo mundo, só aumenta esse abismo, porque a gente faz uma comunicação que não toca quem precisa ser tocado. Então, a gente aumenta mais esse analfabetismo digital que já existe, porque, se as pessoas tiverem acesso ao que a gente escreveu, não necessariamente elas vão entender o que a gente tá dizendo.
[D] Ivana, durante a nossa entrevista, pude perceber alguns bottoms no seu pescoço, como o do ex-Presidente Lula, da comunidade LGBT e de várias outras causas.
[IV] (Começa a mexer na tira no pescoço e citar o que os bottoms dizem, um a um). Lula 2022, “Talk nerdy to me”, aqui é um bottom dizendo que sou trans-ally (aliada da causa trans), feminista, esse aqui fala “Verifique os seus privilégios”, aqui é uma bandeira do movimento LGBTQI+, que inclui recortes de raça e também inclui os movimentos trans e aqui tem um [dizendo] “Empower”. Ah! E a tira da própria Universidade é com as cores do arco-íris.
Sim, eu ando com isso e os meus alunos têm muita clareza de quem eu sou. Eles sabem que eu sou uma mulher cisgênero, feminista, que o meu feminismo é inclusivo e inclui também as pessoas trans, que eu sou uma aliada dessas pessoas. Eu deixo muito claro quem eu sou e acho que dar visibilidade, mesmo sendo uma pessoa cisgênero e heterossexual, é importante. Me colocar como uma aliada, não pra roubar o lugar de fala de ninguém, mas pra que eu seja visivelmente alguém que as pessoas possam vir e conversar. A comunidade LGBTQI+ já passa por obstáculos gigantescos em toda a sua história, vem buscando por espaços, e o mínimo que qualquer pessoa heterossexual cisgênero deveria fazer é ser uma aliada.
Eu deixo isso bem claro, porque os meus alunos sabem com quem eles tão falando, no sentido de que eles têm abertura pra falar comigo sobre qualquer assunto sabendo que vou ser receptiva a eles e vou estar aqui pra ajudá-los e dar suporte na medida que o meu entendimento e a minha experiência permitirem. Por isso ando com eles pendurados.
[D] Este ano, a gente tem eleições e, na nossa conversa, a gente falou sobre diversos desafios, alguns deles antigos e que ganham novos paradigmas e complexidades conforme o tempo passa. Enquanto brasileira, que não perde as conexões com o próprio país, quais novos desafios quer que a gente enfrente pra que a gente deixe de enfrentar os velhos?
[IV] Olha, honestamente, se nos próximos cinco anos a gente conseguir reverter todo o retrocesso que a gente teve desde 2018, a partir de 2016, eu diria, mas desde 2018, majoritariamente, já vai ser uma coisa maravilhosa. Mas, claro que a gente tem muitas coisas pra serem avançadas: direitos civis igualitários, questões ambientais, distribuição de renda, educação…
Uma coisa que sempre falo aqui é do ditado que a gente tem dizendo que o Brasil é o país do futuro. Eu detesto, porque a gente é sempre o país do futuro e o futuro nunca chega. Isso é uma coisa profundamente irritante. Quando a gente deixou de ter gente morrendo de fome, [logo depois] a gente teve esse retrocesso e agora tem gente morrendo de fome no nosso país de novo. É muito inaceitável [que] um país que tá entre as dez maiores economias do mundo tenha gente morrendo de fome, por conta de uma má distribuição de renda, por conta de que, sei lá, cinco por cento da população do país tem 90% da riqueza.
Eu não sei nem a estatística direito, mas é gritante. Acho que o Brasil é o segundo ou terceiro pior país do mundo pra distribuição de renda. É um dos recordes mais vergonhosos que a gente tem. A mudança que a gente tem que fazer, [que] não é uma mudança, mas uma retomada, é a distribuição de renda. Distribuindo renda, as pessoas param de morrer de fome e as pessoas comendo, a gente consegue começar a pensar em fazer um país melhor. Mas sem isso e sem igualdade de direitos civis, a gente não tem nem como começar a discutir nada de evolução. Acho que é por aí.
Neste movimento de falar sobre o território brasileiro e os desafios ligados profundamente a este solo, Ivana sugeriu que o caminho seja em rumo à jornalista Joelma Viana, que é gestora da Rede de Notícias da Amazônia e leciona nas Faculdades Integradas do Tapajós. Portanto, na próxima publicação, vamos do Sul ao Norte: de Santa Catarina ao Pará.