Lugar de Militar é no Quartel (ou na cadeia)
Em fevereiro de 2018, Michel Temer nomeava o General Joaquim Silva e Luna como ministro da defesa. Pela primeira vez desde a criação do ministério em 1999, um militar ficaria à frente das Forças Armadas, rompendo um princípio importantíssimo para a democracia brasileira, o do poder civil coordenando o militar. Propositalmente ou não, Temer abriu um precedente perigoso (e belicoso) na política brasileira.

Durante quase três décadas, os militares comandaram uma ditadura (não regime ou revolução, ditadura) que esgarçou os direitos humanos, políticos e civis dos brasileiros. No final, com o prestígio já dilacerado, os militares fizeram um “grande acordo” com a classe política e produziram um dos maiores erros da história do Brasil: a lei da Anistia, que classificava os crimes cometidos pelos militares como crimes políticos, quando na verdade, se tratavam de crimes contra a humanidade.
Em um parecer apresentado à OAB em julho de 1979, o então advogado Sepúlveda Pertence dava o tom quanto ao projeto de anistia apresentado pelo governo. “É a sua frontal incompatibilidade com um dado elementar do próprio conceito de anistia, ou seja, o seu caráter objetivo. Em outras palavras, o que o governo está propondo, com o nome de anistia, tem antes o espírito de um indulto coletivo do que uma verdadeira anistia”. Em 2010, o Supremo Tribunal Federal (STF) rejeitou uma possível revisão da Lei da Anistia porém, um voto — ainda que vencido — merece destaque. Ayres Britto, ao acompanhar a divergência aberta pelo ministro Ricardo Lewandowski, assentou quanto à anistia decretada em relação aos crimes políticos:
“Um torturador não comete crime político. Um torturador é um monstro, é um desnaturado, é um tarado. Um torturador é aquele que experimenta o mais intenso dos prazeres diante do mais intenso sofrimento alheio perpetrado por ele. É uma espécie de cascavel de ferocidade tal que morde ao som dos próprios chocalhos. Não se pode ter condescendência com torturador.”
Ministro do supremo tribunal federal Ayres Britto
E assim foi feito. Torturadores, estupradores, assassinos e criminosos de farda em geral não foram punidos, e olha no que deu.
É fato que o atual governo é militar. Significa que estamos em um golpe? (Ainda) não. Porém, os militares estão governando. Além do fato de que a chapa presidencial vitoriosa em 2018 foi composta por um capitão e um general, o governo Bolsonaro — segundo o Tribunal de Contas da União — tem em torno de seis mil militares em todos os níveis da administração pública federal. Como se não bastasse, a eleição de 2020 teve o maior número de candidatos militares desde 2005, com 6.755 fardados querendo ocupar cargos eletivos. Até o fim de 2020, a ala militar do governo havia ocupado em torno de 10 ministérios, dentre eles os mais importantes como Casa Civil, Infraestrutura, Transparência e como se não bastasse, Saúde. Em plena pandemia. Na ditadura, segundo o relatório final da Comissão Nacional da Verdade, militares foram responsáveis pela morte ou desaparecimento de 434 brasileiros. Na democracia, se associaram ao aniquilamento de seiscentas mil vidas. Seiscentos mil vitimados pela negligência do governo federal em relação à pandemia, patrocinando ou elaborando as mais variadas teses negacionistas.
Todos os fatos expostos neste artigo se encaixam com uma escada, onde cada degrau é um erro gritante. Lei da Anistia, falta de promoção do direito à memória, o debate inexistente sobre um Alto-comando unificado das Forças Armadas com a presença de civis… Erros expostos com maestria por William Nozaki, professor de ciência política da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) em artigo intitulado “A Militarização da Administração Pública no Brasil: projeto de nação ou projeto de poder?” Na mesma obra, Nozaki afirma que as operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLOs), principalmente para segurança pública, eventos esportivos e greves das polícias militares reafirmaram a ideia das Forças Armadas como mediadora de conflitos sociais internos e como forças eficientes em matéria de gestão e administração pública. Porém, reafirmar uma ideia não faz dela verdadeira.
O Brasil urge por uma reforma das Forças Armadas com poder civil tutelando o militar, clama pela proibição de militares da ativa na administração pública e implora por uma quarentena obrigatória para os fardados que queiram se candidatar a cargos públicos. É outubro de 2021, o Brasil já chora a morte de 605 mil mortos pela Covid-19. Nas palavras do vice-presidente da república: “Se o nosso governo falhar, errar demais — porque todo mundo erra –, mas se errar demais, não entregar o que está prometendo, essa conta irá para as Forças Armadas.” E irá mesmo. Haverão de voltar para os quartéis, de onde nunca deveriam ter saído e, nos casos em que for constatada culpa, cadeia. Porém, para os casos especiais, aos vermes fardados da república só posso entoar um canto. “Vem Tribunal de Haia.”*
*Em memória de Francisca da Costa Silva, uma entre seiscentas mil vidas findadas pela negligência governamental.