Torcedor misto: uma análise do modo de torcer em Santa Catarina

O futebol, sem dúvidas, é o esporte que mais arrasta multidões em todo o planeta. No Brasil, é possível notar torcedores apaixonados, não importa a competição, rodada ou divisão. Mas existe uma categoria dentro da torcida de futebol, onde torcedores acompanham e torcem para mais de um clube, geralmente um de sua região, o outro do eixo Rio – São Paulo: o “torcedor misto”.
A pesquisa DNA Torcedor, divulgada pela Ibope Repucom, em 2017, que investiga hábitos das torcidas de futebol no Brasil, revela que o país possui 110,4 milhões de torcedores em todo o território nacional. Destes, 41,4 milhões, equivalente a 37%, torcem para mais de um time.
O movimento do torcedor misto não é exclusivo de alguma região ou estado, mas é possível notar lugares que esse fenômeno se intensifica. Em Santa Catarina, a mesma pesquisa revela que de todos os torcedores do estado, 34% se identificam como torcedores mistos. Existem alguns processos que tornam Santa Catarina como um dos estados com mais torcedores mistos, desde o contexto do futebol catarinense, até transmissões de rádio ou TV.
Histórico: Futebol em Santa Catarina
Atualmente, alguns times de Santa Catarina ocupam o seu determinado espaço na mídia futebolística e no cenário do esporte, mas a verdade é que nem sempre foi assim. O futebol catarinense teve início em 1913, com o surgimento do clube Sport Club Brusquense, que mais tarde oficializou seu nome para Carlos Renaux. Em 1921, foi criada a Liga Catharinense de Desportos, que contavam com outros pequenos clubes. Em 1924, é criada a Federação Catarinense de Futebol (FCF), entidade que organiza todas as competições de futebol em Santa Catarina. Junto com a FCF, surge o Campeonato Catarinense, maior competição do estado. Com a crescente das competições, as cidades do estados começaram a se organizar para a criação de mais equipes, e assim, o futebol, catarinense foi tomando forma.
A expansão do futebol catarinense começa em 1991, quando o Criciúma, time do sul do estado, se sagra campeão da Copa do Brasil, umas das competições mais importantes do país, disputada no formato mata-mata. A partir daí, as edições do Campeonato Brasileiro sempre contam com algum time catarinense, mas nunca com trajetórias marcantes.
A dupla da capital, Avaí e Figueirense, eram os que mais se destacavam no cenário nacional, com boas participações na série B, e revezamento na série A. Em 2015, o Brasileirão contou com quatro times catarinenses na série A (Chapecoense, Figueirense, Avaí e Joinville). Na ocasião, o estado do Rio de Janeiro teve somente três representantes. Mas esse fato não mudou a relação do futebol catarinense com o cenário nacional em si.
Porém, em 2016, a história mudaria por completo. A Chapecoense dominou o futebol catarinense com seu elenco, e ida para as semifinais da Sul-Americana. A história da Chape foi interrompida por uma tragédia. No dia 26 de novembro daquele ano, a aeronave que transportava jogadores e dirigentes da Chape caiu na Colômbia e deixou 71 vítimas fatais. O acidente, considerado como um dos maiores na história do futebol, trouxe muitos olhos para Santa Catarina, e principalmente, carinho de outros torcedores com a Chapecoense.

A partir de 2019, o futebol em Santa Catarina ganhou um novo participante. O Brusque Futebol Clube, que naquele ano, se sagrou campeão brasileiro da série D, foi se estruturando e surgindo como uma boa equipe nas competições brasileiras. Em 2022, o “Marreco” teve sua segunda participação na série B, e ainda garantiu a taça de campeão catarinense.

Porém, Santa Catarina nunca chegou ao nível de mídia e futebol dos estados vizinhos, Rio Grande do Sul e Paraná, que possuem times consagrados como Grêmio, Inter, Coritiba e Athlético. Do estados da região sul, Santa Catarina sempre ficou em escanteio, considerado o estado da região com menos tradição no futebol.
A realidade do futebol em Santa Catarina é uma verdadeira bola de neve. O ponta pé inicial é a falta de investimento, que gera clubes sem estruturas e elencos fracos, que resulta em poucas aparições no cenário nacional, assim, pouca transmissão e reconhecimento, que retorna para a falta de investimento. O ciclo se repete. De novo e de novo.

A falta de transmissões de jogos e a presença dos times catarinenses na mídia esportiva
A história do Rádio em Santa Catarina inicia em 1936, antes disso, os catarinenses sintonizavam em emissoras de outros estados para poder acompanhar o que acontecia no Brasil e no mundo. A primeira transmissão em SC ocorreu na cidade de Blumenau, na sede da Rádio Clube, e dali em diante, outras emissoras surgiram no mercado radiofônico e passaram fazer parte do dia a dia do catarinense.
A rádio foi um importante fator no quesito futebol, porque foi através dela que os jogos eram transmitidos, antes da popularização da TV. As rádios, em sua grande maioria, transmitem os jogos do clube da cidade ou região próxima. Então, era comum, o torcedor acompanhar o clube do munícipio, através das transmissões esportivas.
Mesmo com a criação de diversas emissoras no estado, as rádios paulistas e cariocas, como Tupi e Nacional, ainda dominavam a casa dos catarinenses. O que resultou no surgimento de muitos torcedores de times de São Paulo e Rio de Janeiro, já que as transmissões dos jogos eram desses lugares.
Na TV, o processo não foi diferente. A televisão chegou no Brasil no ano de 1950, mas foi se popularizar em 1970, justamente por conta do futebol. Naquele ano, o Brasil estava disputando mais uma Copa do Mundo, e em campo, não tinha nada mais nada menos do que Pelé.
Em Santa Catarina, as transmissões eram divididas entre emissoras pelo estado. A TV Cultura, de Florianópolis, em 1970, transmitiu a primeira imagem em vídeo gerada na estação de Floripa. Cerca de 50% da programação era replicada da TV Tupi, de São Paulo. Em Blumenau, a RBS, foi fundada em 1979, e transmitia para todo o estado de Santa Catarina sua programação local, e retransmitia o sinal da Rede Globo. Em 2017, a RBS vendeu suas operações, e a emissora passou a se chamar NSC. A programação da NSC, continua com telejornais locais, e transmissões da programação da Globo.
Da mesma maneira que aconteceu com o rádio, a TV também replicava jogos que passavam nas emissora nacionais. As transmissões de Rádio e TV de jogos de outros estados criaram uma legião de torcedores apaixonados por times de fora de SC. Diversos catarinenses são torcedores assíduos de equipes como Vasco, Flamengo, Corinthians, São Paulo, entre outros. Nas lojas de artigos esportivos, as camisas de times do Rio e SP, são as que mais vendem.
Os Jornalistas Roberto Alves e Paulo Brito, no livro “Dás um banho: O rádio, o futebol e a cidade”, focam na mesma perspectiva citada anteriormente. “Surpreendentemente para os novos habitantes foi descobrir que ilhéu (Florianópolis) discutia as atuações e conquistas de Flamengo, Fluminense, Vasco ou Botafogo no Rio de Janeiro; enquanto Avaí e Figueirense, clubes locais não eram muito considerados”, relatam.
Hoje em dia, as transmissões em Santa Catarina ainda não mudaram. No domingo à tarde, dia típico de rodada do Brasileirão série A, a transmissão não vai ser de um time de Santa Catarina. A NSC TV, segue replicando o sinal do Globo, então, basicamente o que estiver na programação de futebol na TV do Rio, também vai estar na TV do catarinense. Em 2012, o time paulista Corinthians, recebeu 29,2 milhões de cotas de TV, o que somou 15 jogos na TV aberta. Já a Chapecoense, totalizou três jogos, com a soma de 9,4 milhões de cotas. Em 2022, a série A, teve apenas um representante catarinense, o Avaí. O time da capital não teve nenhum jogo transmitido em TV aberta.

A mídia em si também tem um papel importante. As principais redes de TV estão sediadas em São Paulo e Rio, então os programas esportivos e jornalísticos reproduzem notícias, fatos e informações sobre os times instalados nessas cidades. É raro conseguir consumir informações sobre esses times catarinenses.
O programa esportivo ”Jogo Aberto”, vinculado no dia 14 de novembro de 2022, após a finalização do Campeonato Brasileiro Série A, teve duração de 1 hora e 45 minutos. Na ocasião, o único clube catarinense citado foi o Avaí, e a fala sobre o clube durou quatro segundos. O fato citado é um retrato de da mídia esportiva brasileira. Quando o assunto é futebol em Santa Catarina, o estado fica em “escanteio”.
Somado a dificuldade de transmissões, mais a falta de tradição no futebol, Santa Catarina se tornou o lugar perfeito para torcer para mais de um time. Existe um padrão de torcedor misto. Geralmente, ele começa torcendo para um time do eixo Rio – São Paulo, por conta dos motivos citados anteriormente, e em uma tentativa de se sentir mais perto e em contato direito com o futebol, começa a simpatizar com um time de sua cidade ou região, para que assim, possa frequentar estádio e socializar com outros torcedores.
O misto também tem outro perfil. A pesquisa Ibope Repucom, revela ainda que o torcedor que se identifica com mais de um clube tem uma faixa etária acima de 35 anos, e do gênero masculino.
O Anti-Misto
Existem aqueles que não concordam de maneira nenhuma com esse modo de torcer. O movimento Anti-Misto surgiu no nordeste, onde faixa com os dizeres “Misto, vergonha do nordeste”, foram espalhados em uma partida de futebol entre Ceará x Flamengo, em 2009. O movimento anti-misto rapidamente se espalhou pelo país, como em Goiás, onde a torcida organizada Força Jovem Goiás, replica a seguinte canção durante as partidas: “Misto, misto, misto! Tu nasceu em Goiás, vira lata, traidor”.

Em Santa Catarina, o anti-misto não é tão forte, mas é defendido com unhas e dentes por alguns torcedores, geralmente de torcidas organizadas no estado. O movimento prega que o amor incondicional deve ser dedicado única e exclusivamente a um só time, e além disso, recomenda que seja o clube da sua cidade ou região.
Na partida entre Brusque FC e Vasco da Gama, do Rio de Janeiro, em setembro deste ano, válido pela série B, foi possível notar que a arquibancada visitante destinada a torcedores do Vasco estava lotada, não somente por cariocas que viajaram para acompanhar a partida, mas também, por torcedores que frequentavam o estádio Augusto Bauer em outros jogos com a camisa do Brusque.
Na tentativa de fortalecer a imagem do clube, o Brusque FC lançou a campanha “Jogo do Brusque, camisa do Brusque”, onde é estritamente proibido a utilização de camisas de outros times. Antes disso, era comum encontrar torcedores com camisas do Flamengo, Palmeiras, Botafogo no estádio, mesmo que o jogo fosse do marreco. Essa ação foi aderida por vários clubes no estádio, como Tubarão e Marcílio Dias.
O Flamengo, em resposta ao episódio do jogo contra o Ceará, entrou em campo carregando a faixa “Torcida do Nordeste: Um dos orgulhos da nação rubro-negra“.
A “batalha” entre mistos e anti-misto é colocada em pauta todo jogo, e a discussão caminha para a web. O Avaí, no ano de 2022, onde disputou a série A, dividiu os confrontos em duas categorias. Times maiores e de mais clamor do público, o ingresso custava mais caro. Times de menor expressão, o ingresso custava mais barato. A repercussão na internet foi negativa, motivada principalmente por torcedores catarinenses, que teriam a oportunidade de ver o seu clube “de fora” em seu estado.
A mudança
Com o avanço da tecnologia, e o futebol presente no dia a dia do brasileiro, acompanhar o esporte está cada vez mais fácil. Com isso, é possível acompanhar equipes e competições até mesmo fora do país, e é ai que surge uma nova categoria de torcedor misto: o torcedor de um clube nacional e de um clube europeu. Os jogadores badalados, ligas competitivas e as principais disputas como Champions League, chamam atenção de qualquer amante de futebol, e cria uma legião de fãs apaixonados por os clubes internacionais.
As redes sociais também é um facilitador no consumo de informações sobre qualquer time, que faz com que o torcedor se sinta perto, mesmo que geograficamente distante.
A torcedora do Brusque e Atlético MG, Yane Alves, relata sua percepção sobre a mudança. “Hoje é comum ir ver o Brusque jogar e observar que as crianças em sua grande maioria torcem exclusivamente para o Brusque. Os títulos conquistados nos últimos anos, juntando a facilidade de assistir qualquer jogo, faz com que o Brusque se torne um clube perto dos torcedores, sem precisar preencher uma lacuna torcendo para times de fora do estado”, finaliza.
O que fica de aprendizado no final é que seja o torcedor misto, ou não, a única coisa que não irá mudar, nunca, é o amor incondicional que os torcedores carregam pelo seu(s) clube(s).