Miguel Ángel Cadenas: “Em um mundo onde há múltiplas e intensas ‘expulsões’, é fundamental tecer comunhão com os excluídos”

Após um intervalo de quatro meses, esta série de entrevistas está de volta. Afinal, o ritmo da Deriva é a correnteza. Ainda no território amazônida, a conversa com Miguel Ángel Cadenas, desta vez, ultrapassa a divisa geográfica do território brasileiro. Com este diálogo, o trançado de discussões é puxado até Iquitos, no Peru, onde o entrevistado foi ordenado como bispo, em 2021, pelo Papa Francisco. Entre as suas contribuições ao longo de mais de duas décadas de atuação na região, está a articulação que fez e faz para o fortalecimento da comunicação comunitária feita pelos e para os povos originários que habitam o território da Amazônia peruana.

O primeiro contato com ele foi feito no dia 18 de maio e a conversa, que se deu inteiramente por texto e em espanhol, foi finalizada somente no final de junho, entre os dias 22 e 28, mostrando que o tempo da entrevista, assim como o intervalo desde a última publicação, foi dilatado. Durante este período, muitos acontecimentos transcorreram no cenário nacional e latino-americano e, por este motivo, vale ressaltar, especificamente agora, o momento político e social vivido no Brasil, em que a religião tomou o centro do debate público.

Quando algo assim acontece, é necessário tentar refletir como quem olha de fora e este texto é um convite para isto. Os assuntos que são tocados vêm a calhar: Igreja, luta dos povos indígenas, comunicação popular e um olhar contemporâneo e, ao mesmo tempo, ancestral para a teologia, além dos meandros entre um assunto e outro.


[Deriva] Pelo que pude conferir, estamos a, pelo menos, quatro mil quilômetros de distância. Gostaria que descrevesse onde está, para poder, de alguma forma, criar uma aproximação.

[Miguel Ángel Cadenas] Vivo na cidade de Iquitos, na Amazônia peruana. Para os peruanos e colombianos, estamos no Rio Amazonas (consideramos que o Amazonas começa com a união dos rios Ucaiáli e Maranhão, do Peru). Vocês, brasileiros, chamam de Rio Solimões. Para vocês, o Amazonas começa a partir da confluência do Rio Negro. 

Iquitos é uma cidade de cerca de 600 mil habitantes. É difícil dar um número preciso. Os dados oficiais são pouco confiáveis. Estamos a 110 metros acima do nível do mar. Esta cidade teve um dos seus auges no primeiro boom da borracha (1880 a 1914), com uma grande matança de indígenas. Houve outros booms econômicos, sobretudo orientados pelo extrativismo. O último está sendo o do petróleo, que se descobriu na zona em 1971. Iquitos é uma cidade com uma forte presença indígena multiétnica.

[D] No ano passado, você se tornou bispo do Vicariato Apostólico de Iquitos, com 25 anos de trabalho na região. Tendo vindo da Espanha e somando décadas de envolvimento com o Peru, gostaria de saber mais sobre os caminhos que trouxeram você até este ponto.

[MAC] Concluí os meus estudos de Teologia em Madri e me propuseram vir a Iquitos. Aceitei e, desde então, estou há 20 anos vivendo em uma paróquia indígena Kokama. Com eles aprendi a olhar para a Amazônia. Eles têm sido os meus maiores orientadores. A princípio, fui muito duro, porque não entendia nada e era difícil viver assim. Pouco a pouco, e me deixando guiar pelas pessoas, fui entendendo algumas coisas. Tive a sorte de ajudar a formar uma organização indígena na área do Baixo-Maranhão (na denominação peruana), onde vivia, e eles têm tido paciência para me ensinar aquilo que é mais importante. Até que, no ano passado, de modo surpreendente para mim, fui eleito bispo de Iquitos.

[D] Quando o professor Guilherme indicou você, citou o seu trabalho na Rádio Ucamara e a articulação que tem com a comunicação indígena da Amazônia peruana. Seria enriquecedor saber disto a partir de você.

[MAC] Já morei em duas paróquias do Baixo-Maranhão: Santa Rita de Castilla, entre 1994 e 2001 e, depois, de 2009 a 2014, e Nauta, de 2002 a 2008. A Rádio Ucamara fica em Nauta. Quando cheguei lá, tinha uma pequena rádio na paróquia: Rádio A Voz da Selva (Radio La Voz de la Selva, em espanhol). Ela tinha tido uma queda de audiência. Outras estações haviam surgido em Nauta e quase não tínhamos público. A minha primeira intenção foi fechá-la, mas me dei um ano para experimentar e ver [o que aconteceria]. Ao final desse ano, vi a importância de tê-la. Mas o Ministério de Transportes e Comunicação a fechou porque não poderia manter o mesmo nome, porque já havia uma rádio da Igreja com este nome em Iquitos. Então a reabrimos em 2006, agora com o nome de Rádio Ucamara (junção dos nomes dos rios Ucaiáli e Maranhão).

Até então, eu já havia acompanhado várias organizações indígenas, unido à preocupação ambiental que trazia da Europa. Ao organizar a Ucamara, pensei em uma rádio que desse oportunidade ao povo Kokama. Organizei um grupo de pessoas próximas à Igreja para capacitá-las para que tocassem a rádio. Estive com eles até meados de 2009. Desde então, eles têm tido conquistas que eu nem poderia imaginar.

A esta altura, já tinha compreendido que comunicação não era somente falar pela rádio, mas movimentar presenças. E a presença não é somente do corpo, fundamental para a presença, também há presenças de espíritos, no plural. A importância dos sonhos. A necessidade de defender o território, dar esperança, acompanhar, abrir-se às perguntas, dedicar tempo a permanecer ao lado das pessoas, escutar. Buscar instituições que possam ajudar, conectar experiências diversas, buscar amparo legal…

Era importante documentar o que o povo Kokama estava vivendo: as histórias das associações de bairro, a festa de Carnaval com os mascarados, as comemorações tradicionais, as reivindicações das associações de moradores…

[D] Pessoalmente, existe algum episódio que tenha marcado você durante o trabalho na Rádio?

[MAC] Dois momentos importantes: um foi ao abrir a rádio e formar uma nova equipe. Não sabíamos nada de rádio. As outras estações fizeram pouco de nós. Começamos com pouca audiência. Tínhamos falhas técnicas… Nas primeiras eleições, quando precisamos dar notícias confiáveis, sem pretensões, fizemos um grande trabalho, mas quando o veiculamos já não servia para nada, já se tinha proclamado o vencedor. Foi um começo difícil. Faziam pouco de nós. Ninguém queria assumir um jornal. Mas, com perseverança, conseguimos continuar. Um segundo momento importante foi quando iniciamos dois programas em [língua] kokama: um no sábado e outro no domingo. Por trás disso, foram anos de preparação com um grupo de animadores cristãos que falavam kokama, não houve nenhuma improvisação.

Um dos programas era totalmente em kokama, sem tradução, e o outro era uma tradução simultânea em kokama-castelhano. A intenção era que as pessoas se acostumassem com o kokama e que algumas pessoas pudessem recordar do seu idioma materno e, inclusive, aprendê-lo. Os programas iniciaram com o nome de Kukamakana Katupi. No começo, as pessoas não ligavam, ninguém queria reconhecer que sabia falar o idioma. Cada programa tinha muitas horas de preparação. Mas, no primeiro mês após ter ido ao ar, a mudança foi visível. Algumas pessoas começaram a se cumprimentar em kokama. Nos escutavam muito baixo nas suas casas para que os vizinhos não soubessem. Pouco a pouco se foi perdendo o medo e, por fim, havia mais pessoas que falavam kokama do que pensávamos. Foi um grande sucesso.

[D] Após as experiências que teve em todo esse tempo, o verbo “comunicar” ganhou novos sentidos para você?

[MAC] Ampliei o termo “comunicar” em, pelo menos, três direções. Em uma primeira, poderíamos dizer que a comunicação não é unicamente humana. Outros seres também falam, conversam: os animais, os pássaros, os espíritos… Em outras palavras, a cosmologia é importante na comunicação. Não é apenas o contexto em que a comunicação ocorre, é um espaço onde se amplia a comunicação com outros seres que povoam o cosmos. Com isto, poderíamos dizer que os humanos necessitam de outros seres para aprender a falar: o fisális (tsaka) explode na boca da criança para que aprenda a falar; se limpa a orelha da criança com pena do japu (yapiuna) para que possa aprender a imitar todo tipo de sons e que comece a falar. Em segundo lugar, comunicar também significa ensinar a “economia da comunicação”. Quando alguém fala, outra pessoa pode aprender. Por isso os Kokama não dizem tudo o que sabem. Um professor nunca falaria tudo o que sabe porque seus alunos o superariam e ele diminuiria em conhecimentos. Uma terceira direção é que comunicar não quer dizer exclusivamente falar, mas sim estar presente. Em muitas ocasiões, as pessoas vêm conversar umas com as outras sobre algo, mas não dizem nada, simplesmente estão e isto é suficiente. Então, estar, permanecer é, ou pode ser, uma forma de comunicação muito intensa. De novo, a presença corporal é muito importante, mas também alguém pode estar fisicamente distante e, ainda assim, é possível sonhar com esta pessoa. [E isto] é o suficiente para poder comunicar-se.

[D] Na terceira entrevista desta série, a Joelma Viana, coordenadora da Rede de Notícias da Amazônia, no Brasil, falou sobre como a Pastoral da Juventude (PJ) a aproximou da comunicação popular nos anos 90. Na sua percepção, a partir de outro lugar na América Latina, hoje em dia, os movimentos católicos mantêm o compromisso com o fazer comunicacional voltado ao povo?

[MAC] Comunicação voltada ao povo. Teríamos que definir o que significa “povo”. Normalmente, nós pensamos o “povo” como uma unidade. Este sentido me parece problemático. Ao contrário, na Amazônia existem multiplicidades. Me parece que há pessoas da Igreja que mantém uma comunicação com diversos setores do “povo”. Me parece que depende mais das pessoas do que da instituição em si.

[D] Quando falo do fazer comunicacional voltado ao povo, me refiro a uma comunicação popular comprometida com os interesses da maioria.

[MAC] O termo “povo” não me convence porque fala de “unidade” e na Amazônia é preferível a “multiplicidade”. Não é por acaso que, em muitos idiomas amazônicos, o número “um” é incompleto e a completude se manifesta no número “dois”. Para se comunicar com o “povo”, tem que haver um salto de fazer mais do que apenas institucional. Você tem que ir além do papel que você desempenha.

[D] Continuando na análise de pontos levantados na entrevista que citei anteriormente, sabemos que, atualmente, tanto no Brasil quanto em outros países latino-americanos, experiências políticas autoritárias têm sido vivenciadas e, muitas vezes, se fazem valer do cristianismo para se justificarem moralmente. Como bispo, qual a sua análise sobre esse contexto?

[MAC] Minha opinião é que o cristianismo deve ser bom, mas não ingênuo. São Paulo usou a terminologia do Império Romano para proclamar Jesus Cristo. Termos como “Senhor”, “Salvador”, “Evangelho”, “Igreja” e “fé” são termos imperiais. “Senhor” e “Salvador” são termos que se referem ao Imperador; “Evangelho” é a boa nova quando um imperador ou um militar entra numa cidade; “Igreja” se opõe às assembléias das cidades; “fé” se refere à lealdade ao Imperador. Para os ouvidos de alguns que estavam mais ligados ao Império, poderia soar chocante. Não foi por acaso que São Paulo foi espancado e preso em várias ocasiões. Assim, quando vejo que o cristianismo se deixa ser facilmente manipulado pelo poder, lembro de São Paulo e lamento que a mensagem cristã possa ser tão deturpada. Seria uma perversão do cristianismo.

[D] Em uma das suas entrevistas às quais tive acesso, você comenta sobre sonhar com uma teologia mais amazônica. O que essa ideia significa?

[MAC] A teologia é o discurso sobre Deus. Como tal, é de segundo nível. O primeiro nível seria ocupado pela oração, adoração… Até agora o cristianismo é ocidental. [Portanto,] ele foi implantado na Amazônia em sua versão ocidental. Evidentemente, há uma notória colonialidade em tudo isso. Uma teologia mais amazônica implicaria em problematizar as categorias ocidentais de pensamento para, então, pensar/sentir um cristianismo com categorias amazônicas. Vamos dar um exemplo: em alguns livros (a Bíblia é muito desigual), a cosmologia bíblica é povoada por seres como Leviatã, Beemote… A “leitura imagética”, quando dependente de uma cosmologia moderna sem seres mitológicos, esconde-os. Por outro lado, as cosmologias indígenas da Amazônia são povoadas por seres. A transmissão da Bíblia na Amazônia depende da interpretação imagética (o que estudamos nos seminários, onde descartamos esta cosmologia bíblica), enquanto que a população amazônica poderia compreender mais facilmente esta cosmologia. Em tempos de mudança climática, estas cosmologias bíblicas e amazônicas podem ser de grande interesse.

Outro exemplo, dos muitos que poderíamos dar, é que na Amazônia, ao invés de discursos dependentes de lógos, há narrativas. Na Bíblia, há narrativas (as parábolas de Jesus, por exemplo) e discursos mais ligados a lógos (de influência helênica). A parte mais narrativa da Bíblia se relaciona mais facilmente com a Amazônia. No entanto, a teologia é excessivamente discursiva, racional (neste contexto amazônico). É necessária uma teologia mais narrativa. Uma teologia mais amazônica teria que dialogar com a Bíblia a partir da Amazônia. Não é uma questão de ignorar a contribuição ocidental, mas de entender que ela não deve ser a única, nem a primeira.

[D] No discurso que você fez no evento da sua ordenação episcopal, existe uma menção, que me chamou atenção, sobre o que você articulou como um chamado a sermos “tecedores de comunhão”. Poderia falar mais sobre isso?

[MAC] “Tecedores de comunhão”. A tecelagem é uma atividade tradicionalmente importante na Amazônia. A comunhão para os cristãos é uma questão de grande importância. A comunhão implica um outro diferente, com o qual busco conviver. Não se trata de homogeneidade, mas de aceitar a diversidade, de permitir que estejamos conectados, em comunhão. Portanto, “tecedores de comunhão” seria uma fórmula que se inspira em duas tradições. 

Agora, em um mundo onde há múltiplas e intensas “expulsões” (de territórios indígenas, de serviços básicos…) é fundamental tecer comunhão com os excluídos, os que não são convidados à mesa (para usar outra metáfora cristã, Jesus convida a todos à mesa, especialmente os excluídos). Não estou pensando em uma comunhão onde todos pensamos da mesma forma. Pelo contrário, ao pensar de forma diferente, buscamos formas de compreensão e tecemos essa comunhão com os excluídos.

[D] Como sabe, esta conversa que estamos tendo acontece em rede. Agora, por fim, gostaria que indicasse a próxima pessoa com a qual vou conversar (em território peruano, brasileiro ou qualquer outro) e me explicasse o porquê.

[MAC] María Luz Canaquiri, indígena Kokama. Ela é a presidente da Wainakana Kamatawarakana (Mulheres Trabalhadoras), uma organização de mulheres indígenas Kokama. Eles, com o apoio de alguns amigos, entraram com uma ação judicial para declarar o Rio Maranhão como um sujeito de direitos. Elas estão tentando se defender contra a dragagem da hidrovia amazônica e os múltiplos derramamentos de petróleo. Eu a conheço há quase três décadas e ela é uma pessoa muito inspiradora para mim. Quando quase não havia mulheres como líderes indígenas, ela já participava das reuniões e tinha voz própria. Foi muito difícil para ela alcançar a liderança que ela tem hoje, mas com muita tenacidade ela conseguiu fazer nome em um movimento indígena cheio de homens.


O próximo elo a ser ligado, então, é com María Luz Canaquiri, para mergulhar ainda mais fundo nos significados profundos da coletividade que ela representa e criar aproximações com outros significantes. E, após o mergulho, quem sabe, vir à tona com uma percepção mais atenta às realidades múltiplas.

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